George Harrison Discografia: All Things Must Pass (1970)


Lennon lançou seu John Lennon/ Plastic Ono Band em dezembro de 1970, apenas alguns dias depois de All Things Must Pass. John havia feito a terapia do grito primal em Los Angeles, na metade do ano, e entrou em parafuso. Voltou ainda mais radical e cuspindo fogo para todos os lados. Quando entrou em estúdio, registrou um punhado de canções cruas, tocando um rock básico com harmonias de três acordes e cantando sobre suas dores mais profundas, que vinham da infância e chegavam até o fim dos Beatles, com vários lampejos de ódio, amargura e descrença em quaisquer ideologias, aquelas mesmas que o transformaram em ícone da paz e do amor no ano anterior; em suma, John execrava o seu passado: “Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor (...)/ não acredito em mantras/ não acredito em Jesus/ não acredito em Zimmermman (Dylan)/ não acredito nos Beatles”, resmunga ele em God, assinando na mesma canção o epitáfio que traduzia o final da era hippie:“o sonho acabou”.

George, em suas letras, não reconhecia a existência prévia de um sonho construído sobre valores externos e transitórios, que muitas vezes morriam sob forma de modismos, mas sugeria que as transformações do indivíduo tinham que preceder as mudanças na sociedade. As canções mais “profundas” de All Things Must Pass sugerem que tais transformações só poderiam acontecer através da espiritualidade. John, em seu álbum, desprezava qualquer subjetividade e dizia acreditar “apenas nele e em Yoko”.

Ambos pareciam objetivar a mesma coisa: a consciência de si mesmos, mas os pontos de vista eram totalmente opostos. Enquanto John "matava" a ideia de uma divindade e alegava que ela era apenas uma projeção dos medos humanos, George venerava Deus como uma fonte de sabedoria, e a aceitação de sua onipotência era condição a priori para que as pessoas não caíssem no “mundo das ilusões”, o mesmo que havia engolido Lennon antes do sonho acabar. Para George, o sonho não existia mais desde 1967, quando descobrira que “quando se olha para dentro de si mesmo, então se descobre a paz de espírito que o espera por lá”, como cantou em "Within You Without You".

John falava agora numa língua mais atualizada com os padrões de conhecimento da classe média ocidental - provavelmente sofrendo influência do psicólogo Artur Janov durante os meses de terapia do grito primal - que privilegiava a "racionalidade científica", enquanto Harrison se guiava através das tradições filosóficas espiritualistas da velha Índia.

Do ponto de vista estritamente musical, a diferença entre os álbuns também chama a atenção: o de John tem uma concepção bastante simples, inteiramente baseada em um trio (baixo/bateria/guitarra), com algumas inserções de piano. O de George era denso, com um número infindável de instrumentos espalhados em arranjos maciços típicos do “muro de som” de Phil Spector. Aliás, o que é curioso, Spector foi o co-produtor em ambos os discos.




All Things Must Pass faixa a faixa:

I'd Have You Anytime - George inicia seu álbum de forma surpreendente, com uma faixa que faria mais sentido se encerrasse um dos discos, justamente por ser uma canção suave, em ritmo lento, como se fechasse uma noite de festa. Parceria de George com Bob Dylan, a canção tem uma melodia repleta de modulações elegantes e sofisticadas, criada sobre uma harmonia de acordes com sétima maior, dando-lhe um sabor de canção jazzy bem ao estilo de Hoagy Coarmichael, um dos ídolos de juventude de George. Bob parece ter colaborado mais na letra - um diálogo seguro com a mulher já conquistada - e talvez na segunda parte da música. O solo de Eric Clapton também é de uma elegância sem precedentes em sua carreira, em nada lembrando o estilo pesado do guitarrista.

My Sweet Lord - Essa canção maravilhosa foi o primeiro compacto de All Things Must Pass e transformou-se num estrondoso hit. Mas a música traria problemas sérios para Harrison, pois ele seria acusado de plagiar a canção "He's So Fine", de Ronald Mack, gravada pelo grupo The Chiffons no início dos anos 60. George perderia o processo seis anos depois, pagando quase 600 mil dólares de indenização. O arranjo da faixa é perfeito, começando com a batida de vários violões tocados pelos membros do Badfinger, com o vocal sereno de Harrison. Depois, a música ganha ares de mantra com a entrada da bateria de Ringo, o solo com leve efeito de slide de George em duetos ocasionais com Clapton e os vocais de apoio em estilo gospel do grupo vocal “George-O'hara Smith”, ou em outras palavras, George Harrison ele mesmo em diversos overdubs. Claramente inspirada no clássico então recente "Oh Happy Day" e nos mantras do Radha Krishna Temple, "My Sweet Lord" é hipnótica e realmente inspira alegria e devoção. Um clássico que escapou ileso de todos os problemas posteriores que causou para Harrison. Pattie disse que viu George compondo a canção na cozinha de sua casa, ainda em Esher, em 1969. Mas de fato, sua linha melódica principal é idêntica a "He's So Fine".

Wah-Wah - Esta é a faixa composta por George no dia em que deixou os Beatles, em janeiro de 1969, nas tristes sessões de Twickenham. Começa com um riff de Clapton tocado na guitarra com efeito do wah-wah, um pedal cuja característica principal é imitar o som da voz humana na fala das vogais “u-a”, daí o nome. George o usou muito nas sessões de Get Back/Let It Be com os Beatles e às vezes John tirava um sarro do timbre. A referência ao nome, segundo George escreveu em seu livro I Me Mine, pode ser traduzida como “dor de cabeça”, então a tradução literal da letra pode ser entendida assim: “Você não me vê chorando/você não me ouve suspirando/(...) dores de cabeça.../não preciso delas/sei que a vida pode ser boa/sem dores de cabeça”. É um recado de George para McCartney na ocasião em que a faixa foi composta. O estilo harmônico e a melodia são padrão dentro do rock, com a cadência tônica - subdominante-dominante, e um acorde menor no meio para o efeito dramático característico. É uma boa canção, um bom número de Rock'n'roll, mas é a primeira gravação a sofrer com os abusos do “parede de som” de Spector, pois o resultado é uma massa sonora pesada e cheia de ecos, dificultando a audição do vocal de George, quase sumido em meio a panacéia de instrumentos - incluindo os de sopro - tocados em dobro. Mas poderia soar infinitamente melhor se tivesse menos instrumentos e uma mixagem mais limpa.

Isn't It A Pity (version one) - A longa balada que encerra o lado 1 do álbum é uma das canções mais simples e bonitas já compostas por George; a massa sonora de Spector, desta vez, provoca um efeito hipnótico e profundamente denso, compatível com a melodia triste, desenhada sobre acordes maiores dentro do padrão harmônico que desliza de um sol maior para um lá maior, mudando o ritmo da tonalidade com um efeito agradável. O acorde diminuto no final da frase indica a variação emocional que caminha entre a melancolia e o desespero, enquanto Harrison canta “não é uma pena?/não é uma vergonha?/nos desapontamos uns aos outros/e nos causamos tanta dor...”. O slide de George aparece aqui no timbre que seria sua marca registrada para sempre. Essa faixa tem o mesmo andamento de "Hey Jude", e não se trata de mera coincidência: no final, George repete um coro com a palavra “pity” nos mesmos moldes da faixa dos Beatles, mas com um tom de lamento, ao contrário do otimismo exacerbado do coro da canção de Paul McCartney. Mesmo assim, para evidenciar o contraste (ou talvez o tapa com luva de pelica em Paul), Harrison mixa o coro de "Hey Jude" com o de sua bela faixa, num efeito mirabolante que coloca o ouvinte dentro da contradição de emoções que cercou a dissolução dos Beatles. Na soma de todos esses sentimentos, George parece lamentar a forma como o grupo estava se relacionando no final de 68/início de 69, época em que a canção foi escrita, embora no seu livro I Me Mine ele não explicite tal fato. De qualquer forma, uma das mais belas canções do disco e com toda certeza, de toda a carreira solo do guitarrista.

What Is Life - Esse tema pop em ritmo acelerado e com um riff de guitarra com timbre igual ao usado em "Think For Yourself" abre o lado 2 com empolgação. George compôs essa faixa para Billy Preston, que a gravou em seu álbum Encouraging Words. A letra é convencional, descrevendo uma simples declaração de amor.

If Not For You - A despretensiosa canção de Bob Dylan que encantou George em maio, quando os dois se encontraram no estúdio em Nova York, ganha aqui uma versão pessoal do ex-beatle, num arranjo que buscou aproximar o estilo de Bob (com o uso da harmônica) e o de Harrison (a guitarra slide fazendo a linha melódica descendente que originalmente é tocada por uma marimba na gravação do autor da faixa).

George e Peter Drake gravando o ATMP.
Behind That Locked Door - O primeiro número country do álbum, efeito da paixão de George pelo trabalho recente de Dylan e da Band; melodia linda e delicada, com um trabalho primoroso de steel guitar de Peter Drake, o guitarrista de Elvis. A letra fora escrita em homenagem a Dylan, com uma sugestão de George para que ele “saísse da recente obscuridade e voltasse a mostrar-se de alguma maneira”, como ele sugeriu em no seu livro I Me Mine. Não deixa de soar como uma ironia, já que o próprio Harrison optaria sempre por ficar “atrás de uma porta fechada”, enquanto Dylan iria voltar à ativa dentro em breve.

Let It Down - Esta é, com absoluta certeza, a faixa que mais perdeu com a massa sonora de Phil Spector; tudo muito denso, embolado, com um excesso de instrumentos prejudicando as performances individuais na mixagem final. A melodia é linda, e a harmonia repete a mesma elegância de "I'd Have You Anytime" ao usar acordes de sétima maior que lhe imprimem uma musicalidade refinada. Infelizmente, tudo é prejudicado no resultado final. Para sorte dos fãs, George lançou uma versão demo (com acréscimo de solos de guitarra sobre o violão/base) gravada na Apple, antes das gravações oficiais do álbum, na qual se pode ouvir a beleza límpida da canção sem a “parede de som”. A letra da musica parece ter sido inspirada em Pattie - George nunca deixava esses detalhes claros - e mais uma vez sugere a contradição de sentimentos que ele experimentava em relação a ela naquela época (a faixa fora composta em fins de 1968 ou início de 1969).

Run Of The Mill - Outra bela faixa, que encerra o lado 2. É basicamente construída em cima de violões, com belíssima introdução de George no instrumento. O trompete se destaca na parte instrumental, enquanto a excelente e curta melodia é cantada com bons versos de Harrison, mais uma vez inspirado na dissolução dos Beatles, com quase óbvia alusão á McCartney: “Todo mundo tem uma escolha/sobre quando pode falar ou não/mas é você quem decide qual caminho vai seguir/ao sentir que o nosso pode não ser o mesmo que o seu/ninguém à sua volta vai levar a culpa por você/ninguém à sua volta vai te amar incondicionalmente (...) quando você estiver por cima/e quem é que sabe se você vai me agradar ou até me desapontar outra vez?” (tradução livre).

Beware of Darkness - A canção que abre o lado 3 é outra das melhores composições de George em todos os tempos; fora composta na presença de membros do Radha Krishna Temple, ainda em Esher, e sua letra é uma advertência para os perigos da vida: “Atenção, previna-se, tome cuidado com aqueles caras que usam belos sapatos/e que desfilam elegantemente pelas calçadas/ao mesmo tempo em que muitos caem doentes/vagando sem destino algum/cuidado com o mundo das ilusões/isso pode te pegar/pode te machucar/fazê-lo sofrer desnecessariamente/e não é para isso que você está no mundo/atenção, tome cuidado com os falsos líderes/eles podem te levar para lugares estranhos/enquanto estudam o mapa do mundo/querendo dominá-lo cada vez mais...cuidado com a escuridão”. A melodia e o ritmo da canção seguem mais ou menos o andamento de Something, mas com um desenho que se desenvolve dentro de uma interessante modulação entre sol maior e o mi maior. O solo de Clapton no meio traduz maravilhosamente a dramaticidade urgente da canção, provocando arrepios.

Apple Scruffs - Número acústico que reproduz mais uma vez o estilo de Bob Dylan (George toca violões, guitarra e harmônica, únicos instrumentos na faixa). Trata-se de uma homenagem às fãs que ficavam na porta da Apple esperando pela chegada dos Beatles. Doce melodia num arranjo simples e eficiente, livre da massa sonora de Spector.

The Ballad of Sir Frankie Crisp (Let It Roll) - Balada singela e idílica que surgiu a partir de outra canção que permanece inédita até hoje, "Everybody, Nobody". A letra foi inspirada nos jardins criados por Sir Frankie Crisp, o construtor de Friar Park. Os destaques, além da melodia bonita e triste, é o uso do pedal de volume na guitarra, que endossa a melancolia dos versos.

Awaiting On You All - George retoma o tema da religiosidade, aqui num número cheio de swing (com marcação forte de chocalho) e com ares de musica gospel, com exaltação, chamada e devoção. Outra estrutura melódica muito bem construída e desenhada, com harmonia de vários acordes na escala de dó maior. Fora inspirada num tipo de meditação chamada de Japa Yoga, mas Harrison aproveita para espetar a igreja católica: “Você não precisa de nenhuma igreja/nem de um templo/você não precisa de um rosário ou de livros para descobrir que está confuso/se você abrir seu coração/vai entender o que digo/faz tempo que nos sentimos tristes/como se fossemos de um outro mundo/mas enquanto o papa possui 51% da General Motors/e tem sob controle os preços das ações na bolsa/Deus nos espera para que despertemos e cantemos/pois cantando o nome Dele você estará livre”.

All Things Must Pass - A canção que George apresentou aos Beatles em janeiro de 1969 e que foi tocada de forma desleixada por John e Paul, aqui aparece encerrando o lado 3 do álbum homônimo e com um arranjo sublime, com orquestra, sopros e com um trabalho suave de slide guitar, que desliza gentil e melancolicamente traduzindo fielmente a mesma sensação de fim de festa que aparece em "Isn't It A Pity", composta na mesma ocasião. A harmonia segue a seqüência clássica de mi maior/fá sustenido menor/sol sustenido menor, lá maior e si maior com sétima, com um clima musical semelhante à versão da Band para a canção 'I Shall Be Released", de Dylan. George parecia convicto do momento em que ele atravessava em 1969: “Tudo deve passar/nada na vida pode durar pra sempre/então, devo seguir meu caminho/e encarar um novo dia/a escuridão prevalece durante a noite/pela manhã ela vai desaparecer/a luz do dia é um bem/e vai chegar num momento certo/e com isso a névoa cinza desaparecerá certamente”.

I Dig Love - A faixa que abre o lado 4 é a mais fraca do álbum. Parece uma canção incluída para "tapar um buraco", mas isso não coincide com o fato de que Harrison tinha pelo menos dez canções prontas para serem gravadas, algumas delas bem superiores a esta. Aqui o arranjo tenta seguir os caminhos de "Come Together", com repiques de bateria a cada quatro tempos de compasso e um solo de guitarra no meio da musica, que tem pretensões de ser um blues. Mas Harrison não vai a lugar nenhum, nem na letra e muito menos na música. Dispensável.

Art Of Dying - George volta com mais conteúdo do que assimilou de todos os seus estudos da cultura indiana e das suas tradições religiosas. Aqui a letra fala da reencarnação, em cima de uma melodia eficiente, com arranjo que usa (e abusa) do mesmo pedal de volume na guitarra usado em "The Ballad Of Sir Frankie Crisp". A canção começou a ser escrita em 1966, assim que Harrison tomou conhecimento do hinduísmo e foi concluída pouco tempo antes do álbum ser gravado.

Isn‟t It A Pity (version two) - Outra gravação descartável, embora não necessariamente ruim; Harrison pode ter achado que a primeira versão tenha ficado densa demais, e resolveu gravar uma outra com andamento mais lento e com menos instrumentação. Funcionou razoavelmente, apesar do arranjo um tanto arrastado. A pergunta surge outra vez: por que canções tão boas como "Nowhere To Go" (que se chamava antes "When Everybody's Comes To Town" , com co-autoria de Dylan) e "I Live For" You ficaram de fora?

Hear Me Lord - George encerra o lado 4 - e a parte de canções do álbum - com este tema longo e um tanto arrastado, num ritmo de R&B mais lento, semelhante ao estilo de Billy Preston. A letra é mais uma vez uma reverência a Deus (ou Krishna, se preferirem) e fixa em definitivo o estilo que Harrison desenvolveria com exagero no próximo álbum solo. Infelizmente, como já foi dito, a canção é longa e um pouco cansativa, com coro que repete a frase "hear me lord" à exaustão.

All Things Must Pass 2000
Apple Jam: "Out Of The Blue", "It's Johnny's Birthday", "Plug Me In", "I Remember Jeep" e "Thanks For The Pepperoni". Depois de considerar as jams gravadas entre as canções como algo de boa qualidade, Harrison resolveu lançar esse material todo como terceiro LP de All Things Must Pass. As tais jams não são lá grandes coisas, para falar a verdade, pois os músicos - que eram mais familiarizados com um gênero bem menos complexo que o jazz - preferiram não arriscar muito e ficaram na estrutura básica tônica/sub-dominante/dominante nestas improvisações. Assim, ouvimos boas brincadeiras descontraídas e despretensiosas tocadas no ritmo básico de Rock'n'roll. Delas, a mais interessante é "I Remember Jeep", com Clapton na guitarra solo, Harrison na base, Billy Preston no piano, Klaus Voorman no baixo e Ginger Baker na bateria, além dos efeitos de sintetizador Moog tirados diretamente das master tapes de Electronic Sound, a brincadeira pseudo-vanguardista de Harrison. Outra faixa curiosa é "It's Johnny‟s Birthday", versão da musica tradicional "Congratulations", que George e Ringo gravaram em agosto para presentear Lennon em seu aniversário, o que fizeram quando Harrison apareceu de surpresa num outro estúdio do complexo da Abbey Road (onde ele também trabalhava, no dia 9 de outubro, quando John e Ringo gravavam para o álbum John Lennon/Plastic Ono Band).

All Things Must Pass é um marco não apenas na carreira de George Harrison - representou o seu definitivo selo de qualidade como compositor - mas também foi um disco de sucesso incomparável no formato de um álbum triplo. Na Inglaterra, ocupou o primeiro lugar das vendas por oito semanas consecutivas, o mesmo acontecendo na América (onde ganhou seis discos de platina) e em diversos países da Europa, no Japão e na Austrália. É considerado pela Rolling Stone um dos 500 melhores discos de todos os tempos. George deixou fora do álbum pelo menos uma grande canção que já estava praticamente pronta, em ritmo country-rock (com trabalho perfeito de Peter Drake no steel guitar) chamada "I Live For You", que seria lançada apenas na versão remasterizada do disco em 2000. A canção é linda, bucólica e (como de costume) bastante melancólica, e poucos compositores conseguiam transmitir tal sentimento com uma musica tão delicada e de bom gosto dentro do formato pop como ele o fazia. Inexplicavelmente ela ficou de fora do disco, mas George mesmo reparou o vacilo na edição que ele mesmo mixou em 2000.

Mas outros temas chegaram a ter suas bases gravadas, como "Gopala Krishna", "Dehra-Dun" (composta na Índia em 1968 e que aparece sendo tocada por George no jardim de Friar Park com Paul e Ringo, durante as gravações do Anthology), "Going Down To The Golders Greens", "When Every Song Is Sung" (gravada por Ringo anos depois como "I'll Still Love You") e "Down To The River" (que apareceria postumamente no Brainwashed com outro título e outro arranjo).

Várias deixaram de ser gravadas na ocasião: "Nowhere To Go", "Window, Window", "Tell Me What is Happened To You", "Cosmic Empire", "Mother Divine" - todas elas inéditas até hoje - e temas que mais tarde entrariam em outros discos, como "Woman Don‟t You Cry For Me" e "Beautiful Girl". George estava compondo freneticamente e All Things Must Pass foi a prova mais do que concreta que os Beatles não poderiam comportar tantas ofertas sem que houvesse uma verdadeira revolução interna na forma da banda organizar seu trabalho a ponto de incluir Harrison no time de compositores.

Não é absurdo considerar que nesta altura, George possuísse o mesmo gabarito de John Lennon nesta arte de tecer melodias, ou até arriscar dizer que ele talvez estivesse mais ligado à música do que o colega; Lennon parecia um tanto esgotado criativamente e seu tempo era consumido em demasia pelos projetos e ambições de Yoko, embora seus discos solo de 1970 e 71 tenham resultado em grandes trabalhos. Harrison, por sua vez, estava em plena explosão de criatividade.

Marcelo Sanches
mginger3003@uol.com.br