George Harrison Discografia: Wonderwall Music (1968)

Ainda em 1967, ano de tantas “revoluções por minuto” na vida dos Beatles (Sgt Pepper’s, morte de Brian Epstein, Magical Mystery Tour), George havia recebido um convite inesperado do diretor de cinema americano (radicado em Londres) Joe Massot, para que compusesse a trilha sonora de seu filme, Wonderwall.

Esse convite veio a calhar: o guitarrista andava meio estranho, mais calado, desempenhando como nunca uma função de coadjuvante nos Beatles, sem muita inspiração nas mais recentes composições que levava para a banda e mesmo na pratica da guitarra; seus solos - com algumas exceções, claro - soavam bem aquém de sua real capacidade, e com certeza as drogas estavam elevando sua mente para uma dimensão mais etérea da realidade.

Assim, o convite soou como um belo desafio para ele. A história mostrava o isolamento de uma garota, interpretada por Jane Birkin, que era assediada por dois homens: o namorado, que a abandona quando ela descobre que está grávida, e um cientista vizinho que a observa através de um buraco na parede. No final, este último a resgata de alguma forma da condição frágil em que se encontrava com o namorado. De alguma forma, o roteiro tinha a ver com as questões que chamavam a atenção de Harrison, coisas como privacidade, fuga dos excessos paranoicos da fama e o culto de celebridades como objetos.

O filme sugeria um paradoxo inusitado do universo hippie mais torpe com as cores do flower-power e do LSD. Era um produto típico da Swinging London e um fruto consistente de um tempo em que tudo ainda parecia passível de transformação. Para George, havia mais um detalhe importante: ele usaria sua fama para difundir a musica indiana junto ao público jovem ocidental, pois essa possibilidade ainda não lhe parecia satisfatoriamente concretizada através de seu reduzido espaço nos Beatles.

Entre os dias 7 e 17 de janeiro de 1968, ele passou seus dias no precário estúdio da EMI em Bombaim, gravando com alguns dos mais competentes músicos indianos vários temas instrumentais para a trilha do filme. Harrison não sabia ler nem escrever música, de maneira que foi dizendo (e gesticulando) muito do que queria para os executantes, usando imagens do filme para inspirar-se. Todos os instrumentos típicos como dulcimer, dilruba, tabla, shenhai, santoor, sarod e, claro, a cítara (tocada um algumas partes por ele mesmo, além do craque Shambu-Das, discípulo de Shankar) encontraram temas apropriados para sua sonoridade em faixas como "Microbes" (que abriria o álbum), "In The Park", "Tabla and Pakavaj" e "Love Scene", entre outras. Harrison aproveitou a deixa e usou esses mesmos músicos para gravar a base do que seria seu próximo número com os Beatles, "The Inner Light", que apareceria no lado B de "Lady Madonna" em breve.

De posse das gravações na Índia, George voltou para Londres, onde concluiu a "parte ocidental" da trilha, com inserções de rock através de guitarras (Eric Clapton e Peter Tork, dos Monkees, participaram), e de músicos como o gaitista Tommy Reilly, além de dois membros do grupo The Remo Four (de Liverpool), de Ringo Starr, (que aparece nos créditos como "Richie Snare") e do maestro John Barham, que fez o papel de George Martin nas sessões, ao traduzir para a partitura as partes orquestradas imaginadas por Harrison, além de tocar piano e flugelhorn. Os demais músicos ocidentais que tocaram foram: Colin Manley (guitarra e steel guitar), Tony Tony Ashton (jangle piano e órgão), Philip Rogers (baixo) e Roy Dyke (bateria).

Duas das melhores peças destas sessões em Londres são "Red Lady Too" e "On The Bed", dois magníficos temas incidentais criados no piano por George, com pontos positivos para "Sky-ing", com Clapton (que aparece nos créditos como "Eddie Clayton") na guitarra e "Wonderwall To Be Here", uma quase vinheta, de textura delicada e melancólica.

O restante do álbum possui uma aura psicodélica/indiana bastante atraente, figurando como uma extensão natural das ideias musicais que permeavam a mente de George desde o ano de 1966. O filme foi exibido no festival anual de Cannes em maio de 1968, com a presença de Harrison, Pattie, Ringo e Maureen. Quando lançado, em 1 de novembro de 1968, poucos dias antes do Álbum Branco e do primeiro "solo" de Lennon com Yoko Ono, Two Virgins, o LP Wonderwall Music tornou-se o primeiro álbum solo de um beatle, já que The Family Way, lançado em 1966 com assinatura de Paul na trilha do filme homônimo, não o trazia como músico participante. Também foi o primeiro LP a sair com o selo da então recém-lançada Apple Records.

Foi lançado em versões mono e estéreo, e hoje em dia, a primeira é uma verdadeira raridade para os colecionadores. Enfim, mesmo se encerrasse sua carreira em 1968, ele certamente entraria para a história como o musico popular que mais incentivou a divulgação da musica indiana no ocidente em larga escala e - o que é mais importante - antecipando a viabilidade de um novo segmento dentro do mercado fonográfico, que seria conhecido anos mais tarde como “World Music”. Também divulgou de forma contundente - e às vezes até exagerada - a cultura filosófica oriental, oferecendo aos jovens do ocidente uma alternativa interessante em meio aos questionamentos políticos e sociais dos anos 60: talvez a mais difícil das aspirações humanas, que é a busca de si mesmo ou de Deus. George o fez com autenticidade e coragem, sem medo de parecer um simples roqueiro milionário excêntrico e amalucado.

O compacto com "Lady Madonna", espetacular número jazzy dos Beatles que voou para os primeiros lugares em março, tinha no lado 2 a derradeira canção de George dentro do catálogo da banda com um arranjo que incluía o estilo musical indiano; com melodia leve e cantada com suavidade por ele, tinha a letra tirada literalmente dos escritos de Lao-Tsé, o Tao Te Ching: “Sem sair da minha porta/ eu posso conhecer todas as coisas do mundo/ sem olhar pela janela/ eu posso saber todos os caminhos do paraíso/ o grande apenas viaja.../o pequeno apenas sabe.../o pequeno realmente sabe...”.

E lá no fundo ele sabia mesmo: pouco tempo depois, ele reassumiria que suas paixões musicais eram mesmo o rock and roll e a guitarra. Voltaria a se dedicar a este instrumento com mais vontade e passaria a desenvolver um novo estilo de tocar, mais definido, vibrante e melódico, principalmente pelo uso da técnica que utilizava o slide. Isso sem contar que suas habilidades de compositor alcançariam a maestria com “While my guitar gently weeps”, “Here comes the Sun” e “Something”, entre outras, nos dois anos seguintes. George, finalmente, havia pulado o muro das maravilhas.

Marcelo Sanches
mginger3003@uol.com.br