O amigo português de George Harrison

 

Se George Harrison tinha amigos no Brasil, tinha pelo menos um em Portugal, Domingos Piedade, tudo por causa da Fórmula 1. Quando GH morreu, o site português NetParque entrevistou Domingos Piedade. Aqui vai a entrevista:
Geeorge Harrison não tinha medo de morrer" - Domingos Piedade


Domingos Piedade, atual administrador geral da Mercedes AMG, um dos departamentos da Daimler Chrysler, adora o desporto automóvel. Foi essa paixão que fez com que, no início dos anos 70, se tornasse amigo de George Harrison, falecido a 29 de Novembro de 2001.

Em entrevista ao NetParque, Domingos Piedade reage em primeira mão e recorda o músico, o amigo, a pessoa e histórias como a de um vinho do Porto de 1943 que Harrison recusou por provir de uma péssima colheita, por ser o seu ano de nascimento.


Quando conheceu George Harrison e em que circunstâncias?
Conheci-o pessoalmente ainda no início dos anos 70, quando eu trabalhava com o Emerson Fittipaldi. Já nessa altura o George era um grande entusiasta pelos automóveis. Continuamos, desde então, a manter uma óptima relação, de amizade mesmo. Em 1978, quando fez o álbum que tinha a canção "Faster" (o álbum George Harrison, editado em 1979, sendo que "Faster" é inspirado por Jackie Stewart e Niki Lauda, duas lendas da Fórmula 1), acompanhei-o todo o ano, de São Paulo aos Estados Unidos, passando por Espanha. Estive com ele sempre, dentro e fora das corridas. Mantivemo-nos sempre em contacto e, quando vim para a Mercedes, ele passou a ser um cliente nosso muito especial. Tinha uma relação muito boa com ele e havia muitas vezes a necessidade de fazer com os automóveis coisas para lá do normal, para ele.

Que tipo de coisas eram essas? Extravagâncias?
Não eram extravagâncias. Eram pormenores de um grande entusiasta de automóveis. Ele não gostava dos pormenores da electrónica, como os utensílios que dão a indicação da distância do carro da frente. Esses pormenores davam-lhe cabo da cabeça, não os queria. Ele guiava muitíssimo bem, tinha mesmo o McLaren F1. Encontrávamo-nos várias vezes na McLaren. Estivemos juntos no último Grande Prémio do Canadá há cerca de 15 meses e, nessa altura, já me pareceu na linha descendente. Mas estava cheio de vontade. O George tinha feito um acordo com outro grande amigo nosso, o Eric Clapton, para que ele usasse os nossos carros (da Mercedes AMG), já que são os carros que também ele usa. Disse-me também que queria fazer uma digressão com o Eric Clapton e o Bob Dylan. Mas agora já não dá.

Não foi a tempo.
O que é uma pena. Ele sempre foi um defensor do "low profile", desde sempre. Não diria que tinha complexos, mas sabia que não era um virtuoso da guitarra. Daí aquela sua vontade de aprender, a vontade de que o Eric Clapton lhe ensinasse. Ele era bom, mas não era um virtuoso. Sentia-se, se houvesse um escalão nos Beatles, ainda sem o Ringo, o pior intérprete dos três, tanto a cantar como a tocar. Mas a verdade é que ele era um compositor fabuloso, fez coisas muito boas. Depois teve o caso do "My Sweet Lord", em que o acusaram de roubar passagens de música de outrém, e isso magoou-o muito. Ele era uma pessoa extremamente sensível.

Além do lado musical de George Harrison, que é sobejamente conhecido, que características da sua personalidade assinalaria como mais importantes?
Como pessoa, odiava o vedetismo. Era capaz de apanhar um avião e vir discutir técnica conosco à Alemanha, como adorava que fôssemos a casa dele em Inglaterra, onde ficávamos horas a falar sobre questões técnicas. Era uma pessoa muito normal... Era um connaisseur de vinho.

E conhecia o vinho português?
Eu quis, uma vez, quando ele fez 55 anos, dar-lhe uma garrafa de vinho do Porto de 1943, ao que ele me respondeu: "That's a shitty year" ("esse é uma porcaria de ano", ano do seu nascimento). Vou estar agora com o Eric Clapton em Tóquio, nos últimos concertos da sua digressão, e vai ser uma tristeza. Vai estar toda a gente muito chateada. Ainda por cima é a sua última digressão. Estes dinossauros não tocam mais.

Que relação tinha George Harrison com Portugal, já que visitou o país mais do que uma vez a propósito dos Grandes Prémios de Fórmula 1? Que opinião tinha ele de Portugal?
Nenhuma em especial. É um pouco como o Eric Clapton. Quando Eric Clapton começou a sua última digressão europeia em Madrid, eu disse-lhe: "Não podes começar a digressão em Madrid sem ir a Portugal". Ele ficou a olhar para mim. Mas lá veio a Portugal, lá se fez o concerto. Não havia nenhuma razão especial para não ter tocado em Portugal em vinte e tal anos de carreira. "No reason", disse-me o Eric Clapton. O George Harrison, quando vinha a Portugal para os Grandes Prémios, vinha por vir. São pessoas envergonhadas. O George era mesmo o estilo de grande vedeta que tinha vergonha de ser tão famoso. Ficava embaraçado quando lhe diziam "Ó George, adoro as suas canções!". Ele dizia sempre "Mas por quê? Já passaram tantos anos...". Ele queria viver de forma diferente, daí ter ido para a Austrália há 15 ou 20 anos. Ali é que ele vivia bem e feliz. Ele teve várias fases, a da Índia, por exemplo, e a do "Faster", em que era um autêntico bicho do mato. Não conversava com ninguém, estendiam-lhe a mão e ele encolhia-se, cheio de medo de uma transmissão de vírus. Lembro-me um concerto com os Everly Brothers em Adelaide, em 84 ou 85, em que estávamos muito satisfeitos no "backstage". Nesse concerto, pediram-lhe para fazer uma perninha na guitarra e ele fez, sem problemas, só porque estava na Austrália, onde se sentia muito bem. Sinto muitíssimo a morte dele porque era uma pessoa boa demais e porque esta questão vai mexer muito com a cabeça do Eric Clapton.

Que tipo de emoção sentiu quando soube da morte do seu amigo?
Ontem saí da Alemanha muito tarde e como vou para o Japão, estive a arrumar as minhas últimas coisas. Levo sempre comigo coisas pessoais, alguns amuletos ligados a grandes amigos meus. No meio das coisas, tinha um recorte do Herald Tribune de quando o George foi para Lugano, na Suíça, fazer a primeira fase de tratamento ao cancro. É incrível como ontem (29 de Novembro) estive com esse recorte de jornal na mão, que tem quatro ou cinco meses. E pensei: "Tenho que ligar-lhe". Hoje, no avião, li uma notícia do jornal de ontem que dizia que ele estava internado em Nova Iorque. Pensei mesmo: "Não pode ser, tenho que ligar-lhe. Como terça-feira vou para Tóquio, tenho que ver se eu e o Eric Clapton entramos em contacto com ele". E ficou assim. Cheguei a Lisboa e deram-me a notícia. Fiquei mais chateado do que triste. Deveria haver, para certas pessoas, imunidade à idade, à doença e aos males da própria existência.

Tendo em conta que George Harrison era uma pessoa extremamente mística e humanista, diria que encarou a morte de uma forma natural, como se fosse o menos preocupado de todas as pessoas que o envolvem?
Quando, há três anos, foi assaltado e esfaqueado, falei com ele e senti que ele não tinha medo de morrer. Ele era tão realista que não fez grandes dramas das suas doenças. Foi um processo muito discreto, em que as pessoas sabiam das coisas quase por acaso. Ele tinha repugnância por grande publicidade, dizia com frequência "Não entendo por que sou tão popular, por que as pessoas gostam tanto de mim. Não fiz nada de especial". Mas ele não era exactamente uma pessoa normal, era como os grandes génios, com altos e baixos. Tudo isto é uma pena. A comunidade vai perdendo estas lendas, que não se fazem mais.