Uma narrativa emocionante sobre os últimos dias de George Harrison


Em 2001, o mundo foi forçado a suportar a partida de mais um Beatle. Duas décadas depois de John Lennon, era George Harrison que "despertava desse sonho" (nas palavras da viúva Olivia). Confira um trecho emocionante, que narra os últimos momentos de George, que selecionamos do espetacular livro A Batalha Pela Alma dos Beatles, de  Peter Doggett, lançado em 2009.

Ao longo de 2000, Harrison convalesceu, trabalhou esporadicamente em material para um novo álbum e supervisionou o relançamento do álbum All Things Must Pass. Foi incluído um arranjo retrabalhado de My Sweet Lord, omitindo cuidadosamente todos os elementos que tornaram o compacto original um trabalho tão comercial. Foi um gesto tipicamente intencional, irritante, mas estranhamente admirável, como a própria pessoa do guitarrista. Houve rumores de que os Harrisons sairiam de Friar Park, não obstante a casa em Maui ainda estar sob condições de litígio. Mais surreal foi a sugestão de que Neil Aspinall se aposentaria como diretor executivo da Apple, e Harrison assumiria o cargo – uma opção bizarra para uma celebridade notoriamente reclusa.

Logo transpareceu que não haveria tempo para mudanças, e restava apenas um pequeno e precioso tempo a ser vivido. Em março de 2001, Harrison passou por uma cirurgia para remover um tumor no pulmão. No mês seguinte, ficou sob os cuidados do Instituto de Oncologia do Sul da Suíça, passando uma temporada numa casa à beira de um lago próximo à fronteira com a Itália. Ele se encontrou com Paul McCartney brevemente, em Milão, algumas semanas depois, mas pela maior parte do tempo usufruiu da privacidade que sempre desejara, embora sabendo que a doença lhe sobrepujava pouco a pouco. Se o assassinato de John Lennon foi possivelmente a exposição mais nua e crua dos perigos de ser uma celebridade, os meses finais de Harrison foram, a seu modo, lembretes igualmente cruéis.

Última foto de Paul, Ringo e George juntos

Por uma ironia selvagem, ele, uma das figuras públicas mais relutantes em aceitar sua notoriedade, foi explorado não uma, mas duas vezes, por gente que se preocupou menos com o lado humano do que com a fama. Ele divulgou um comunicado, no início de julho de 2001, declarando que estava ‘se sentindo bem’ e se desculpando por quaisquer preocupações sentidas pelos fãs. Porém, duas semanas depois, o produtor dos Beatles, George Martin, foi amplamente citado como se tivesse virtualmente emitido uma sentença de morte: ‘Ele é um espírito indomável, mas sabe que vai morrer em breve, e está aceitando isso.’ Quando essa declaração apareceu na imprensa, um Martin chocado telefonou a Harrison para pedir desculpas e negar que tivesse feito aqueles comentários. E falou a verdade: suas palavras de fato tinham sido: ‘Ele foi resgatado várias vezes... Acho que ele espera ser resgatado novamente. E acho que vai. Mas ele sabe perfeitamente que há uma chance de não ser’. Este texto foi a seguir distorcido por uma série de editores até se transformar em algo mais sensacional. Harrison insistiu que estava ‘ativo e se sentindo muito bem’, mas a primeira reportagem foi a que ficou na mente das pessoas, mesmo depois de Richard Starkey visitar o amigo e anunciar que Harrison estava ‘bem’.

No início de outubro, Harrison entrou em estúdio pela última vez, para gravar uma canção chamada "Horse to Water" [Cavalo à água] com a banda de Jools Holland. ‘Ele não passou bem no início do ano,’ reconheceu Holland, ‘mas então pareceu muito, muito melhor. Pareceu forte, e sua voz soou realmente forte. Ele vai continuar a melhorar’. Ainda assim, a letra da canção de Harrison soava rude como a voz de um profeta do Velho Testamento confrontando, do leito de morte, os pecados de seu povo. Havia uma estrofe sobre ‘um amigo meu sofrendo tanto’, na qual dificilmente não se via o rosto assombrado de Paul McCartney em luto; outra sobre um alcoólico; uma terceira sobre um ‘pregador’ que ‘me alertou contra Satã’, ficando a inferência de que nenhum desses aparentes heróis conseguira encontrar a paz. Quando os direitos autorais da canção foram registrados, Harrison usou uma nova empresa editora: RIP Ltd, 2001. Foi um golpe final de humor negro.

Duas semanas depois da gravação, a saúde de Harrison declinou acentuadamente. Ciente de que a luta entrava nas semanas finais, ele renunciou ao cargo de diretor da Harrisongs em favor de sua esposa, que logo sucedeu o marido também no conselho da Apple. O câncer seguira um caminho comum, dos pulmões ao cérebro; Harrison ficou dolorosamente magro e sofreu as alucinações provocadas pelos analgésicos mais fortes. Ele cruzou o Atlântico para o período terminal, em busca de um tratamento experimental com radiação na clínica pioneira do Hospital da Universidade de Staten Island. Dali a alguns dias, recebeu uma visita de McCartney. Os dois homens, amigos por mais de 45 anos, mas tantas vezes divididos em consequência da fama, passaram as últimas horas juntos relembrando o passado em comum. ‘Nós rimos e brincamos, como se nada estivesse acontecendo. Fiquei impressionado com a força dele’, recordou McCartney posteriormente.

Uma equipe médica buscou focalizar doses de alta densidade de radiação no tumor cerebral de Harrison, para tentar lhe ganhar alguns meses a mais de vida. Porém, de acordo com uma queixa registrada alguns anos depois, um médico perdeu a compostura e rendeu-se aos apelos da fama de Harrison. Segundo declarou Olivia Harrison, em 2004, o médico levou seus filhos até a casa alugada pelos Harrisons, ‘onde [George] estava de cama e passava por grandes desconfortos’. Lá, o médico fez Harrison ouvir o filho tocar guitarra, e depois pediu-lhe que autografasse o instrumento do garoto. O debilitado músico recusou: ‘Eu nem sei se consigo mais soletrar meu nome’, disse ele. O médico teria dito: ‘Vamos lá, você consegue’, colocando uma caneta na mão de Harrison e ajudando-o a rabiscar o nome na guitarra.

Harrison abandonou o tratamento e voou para Los Angeles, para sessões mais convencionais de radioterapia. Durante o voo, ele estava tão fraco que quase morreu, mas agarrou-se à vida por mais duas semanas. Em 28 de novembro, no entanto, era óbvio que estava perto da morte, e seu velho amigo Ravi Shankar viajou a Los Angeles para visitá-lo. A filha de Shankar, Anoushka, recordou: ‘[George] tinha um olhar que eu nunca tinha visto antes, tão cheio de amor e paz. Ele não podia mais dizer nada com os lábios, mas seus olhos falavam por ele. Aquela casa estava tão cheia de amor’.

George e Olivia Harrison
No dia seguinte, George Harrison morreu às 13h30, na presença da esposa, do filho e de amigos devotos de Krishna. ‘George aspirava a deixar seu corpo de maneira consciente, essa era uma das metas da sua vida’, recordou a esposa. Seu amigo Mukanda Goswami disse simplesmente: ‘Ele era uma pessoa muito espiritual, que não tinha medo de morrer’. Partiu com o perfume do incenso nas narinas, enquanto os amigos cantavam louvores a Krishna. Seu corpo foi coberto com uma manta de seda amarela, e ungido com pétalas de rosas e água benta. A causa oficial da morte foi menos poética: ‘câncer metastático nas células do pulmão’ acompanhado de ‘carcinoma nas células escamosas da cabeça e do pescoço’.

Não houve nada semelhante ao choque gerado pela morte de Lennon 21 anos antes; apenas um profundo pesar por este homem complexo e determinado ter morrido com 58 anos de idade. Seu filho Dhani descreveu a natureza espiritual de Harrison: ‘Não havia nenhuma urgência para ele. Ocasionalmente ele ficava motivado, mas não porque sentisse que ia morrer. Ele nunca se sentou e sentiu pena de si mesmo. Não tinha mais nem medos nem preocupações quando morreu’. Harrison faria falta, disse Richard Starkey, por seu humor e generosidade de espírito. Paul McCartney, que ainda se lembrava de como uma única palavra mal colocada lhe causara problemas quando da morte de Lennon, pronunciou um tributo cuidadoso, mas sincero: ‘Estou arrasado e muito, muito triste. Ele era um cara adorável e um homem muito corajoso, e tinha um maravilhoso senso de humor. Ele é realmente o meu irmão caçula’. O corpo de Harrison foi cremado, e sua família levou as cinzas para Varanasi, na Índia, onde as águas sagradas do Ganges, do Yamuna e do Saraswati se encontram. Olivia Harrison proferiu um réquiem adequadamente espiritual: ‘Estamos profundamente tocados pelo extravasamento de amor e compaixão das pessoas ao redor do mundo. A beleza profunda do momento da passagem de George – de seu despertar deste sonho – não foi surpresa para aqueles de nós que sabiam como ele desejava estar com Deus. Nesta busca, ele foi incansável’. Numa repetição bizarra das repercussões após a morte de Linda McCartney, a mídia atentou para as discrepâncias na certidão de óbito de Harrison – criando um mistério de cinco dias que só foi resolvido ao revelarem o local verdadeiro do falecimento, uma casa nas colinas de Hollywood, arrendada por Paul McCartney (A certidão citava como lar de Harrison um endereço em Lugano, na Suíça, presumivelmente para efeitos fiscais).

Em janeiro de 2002, My Sweet Lord foi o compacto mais vendido na Grã-Bretanha, e Olivia Harrison preparou uma ação judicial contra um membro mais afastado da família, acusado de roubar pertences do marido e vendê-los no dia seguinte à morte dele. Em julho, ela realizou uma celebração particular da vida do músico, em Friar Park, com a presença de McCartney, Starkey e George Martin. E em 29 de novembro de 2002 – ‘fazendo um ano hoje’, como diziam os cartazes – ela organizou o Concerto Para George, no Royal Albert Hall, onde muitos dos amigos mais próximos apareceram para prestar-lhe uma homenagem musical. Dhani Harrison, arrepiantemente parecendo uma reencarnação do pai, como este era em 1963, permaneceu no palco durante todo o concerto.

Como confessou Eric Clapton, George Harrison provavelmente teria dito algo como: ‘Muito obrigado, mas eu realmente não queria isso’. Clapton acrescentou ironicamente que Harrison ‘colocaria um pouco de água no ponche... Ele podia ficar bastante contrariado’. Mas o Harrison a ser celebrado era o buscador espiritual, o mestre de sutis mudanças melódicas e profundo lirismo pessoal. Ambos os Beatles sobreviventes estavam lá. Starkey, quase roubando a cena no evento: ‘Eu amava George; George me amava’, declarou ele, cheio de confiança. Por seu turno, McCartney aparentava hesitação, e quase constrangimento – talvez intimidado por estar em companhia dos aliados mais próximos de Harrison. Ansioso para que não pensassem que buscava os holofotes, ele se apresentou com uma discrição não característica, embora com emoção claramente visível. Mas não seria difícil imaginar o cinismo de Harrison, quando McCartney conduziu a banda numa interpretação intensa de "All Things Must Pass" – uma das canções que os outros Beatles se recusaram a levar a sério em janeiro de 1969.

Sendo naturalmente uma ocasião comovente, o concerto apenas representou uma parte da personalidade de Harrison. ‘George era o homem mais engraçado que eu já conheci’, declarou sua viúva. ‘Quando ele morreu, foi como um “ah, acabou a festa”’. Com um humor astuto que seu marido teria saboreado, ela recordou: ‘Ele não tolerava nenhuma rabugise que não fosse a dele mesmo’. Nos anos seguintes, ela e Dhani supervisionariam os relançamentos dos álbuns de Harrison, e Dhani lançou sua própria carreira musical, além de assumir a função muito necessária de estabelecer conexões entre a Apple e o público do século XXI. ‘A descrição do meu trabalho é ser um entusiasta’, disse ele, aos 30 anos de idade, em 2009.