George Harrison Discografia: Living In The Material World (1973)


Em outubro de 1972, George começou a trabalhar em novas composições na  Apple, em Saville Row. Living In The Material World, o novo disco que resultaria destas sessões, seria o único álbum de um ex-beatle  a ser completamente gravado nesses estúdios. A produção, desta vez, ficaria restrita ao próprio Harrison, sem Phil Spector (apenas "Try Some Buy Some" teria a assinatura de Spector, pois fora registrada em fita com os vocais de Ronnie Spector, em 1971). Os músicos que tocariam nestas novas gravações seriam os mesmos que tocaram no álbum anterior, com acréscimo do baterista Jim Keltner mais o indiano Zakir Hussain - que mais a frente tocaria com John Mclaughlin - na tabla.

George já tinha fama de ser bastante meticuloso nas gravações, objetivando arranjos elegantes e apurados, e mais uma vez exigiu da EMI o tempo necessário para completar o material e lançá-lo no momento que julgasse conveniente. Assim, quem esperava pelo disco a tempo das vendas de natal, decepcionou-se, e o álbum só ganharia as prateleiras das lojas  em maio de 1973, depois de uma polêmica enorme que envolveu o lançamento de duas coletâneas dos Beatles pela Apple/EMI - a vermelha e a azul -  para fazer frente a edições piratas que vendiam milhares de cópias no mercado negro de discos.

Assim como George, Paul também adiou o lançamento de seu novo álbum (Red Rose Speedway), que competiria diretamente com o do ex-colega. Quando finalmente fora lançado, Living In The Material World dividiu a crítica especializada, com parte dela julgando que o disco era mais soturno e moroso que All Things Must Pass, tornando-se maçante em várias canções como resultado direto da exacerbação religiosa que saltava em suas letras. Os arranjos de muitas faixas soavam grandiloquentes demais, com excesso de cordas e de dramaticidade que confrontavam  - mais uma vez - a tendência ao hedonismo que imperava no cenário da musica pop.

Mesmo assim, o compacto com "Give me Love (Give Me Peace On Earth)", que também abre o LP, foi direto para o primeiro lugar nos EUA e chegou ao segundo posto no Reino Unido, mantendo Harrison no topo dos nomes de maior peso no mercado de discos de musica pop; trata-se de uma linda balada, que se inicia com uma batida forte de violões e com um solo em duas linhas melódicas de slide guitar, tão suave e perfeitamente emotivo quanto entristecido, para logo registrar a voz chorosa de George cantando versos que pediam no final que ele “ficasse livre da roda de nascimentos”. A canção pode ser um registro do quanto Harrison  estava inquieto e amargurado,  e  não tem nem sombra da alegria evocativa de "My Sweet Lord",  sendo no entanto musicalmente mais elaborada e melodiosa, contendo um trabalho magnífico de guitarra.

George estava numa grande fase como múusico e compositor, tecnicamente mais apurado e habilidoso do que nunca; a seguir, o bom humor e a ironia fazem o contraponto em "Sue Me Sue You Blues", que  traz um ritmo de  blues acelerado, com um  grande trabalho de todos os músicos envolvidos, desde a sublime bateria de Keltner, passando pelo teclado de Gary Wright e, claro, pelo dobro de George, tocado como uma perfeita assinatura para versos que tiram sarro dos entraves burocráticos que os ex-beatles travavam através de seus advogados. A seguir, a melancolia retoma seu espaço com mais uma balada triste e bela: "The Light That Has Lighted The World". Construída na escala descendente de dó - normalmente uma linha harmônica descendente é usada para expressar angústia na musica popular - a canção traz versos que comentam a contrariedade de George em relação àquelas pessoas que o acusavam de ter se transformado em uma pessoa diferente do “beatle George”.

Deixando a entender que o disco se alternaria entre ritmos lentos e acelerados, entre  o lamento e o bom humor, a próxima faixa é uma das mais animadas do álbum, "Don’t Let me Wait Too Long", e seu arranjo é um precursor do estilo pop que se destacaria em bandas como a ELO, entre outras, e que tinha o futuro colaborador de Harrison nos anos 80, Jeff Lynne, como líder. Jeff reproduziria a batida percussiva que separava os compassos no coro desta canção como uma característica indissociável de seu estilo musical, reconhecendo a influência de George. A harmonia é mais uma vez representativa da marca de Harrison em não se acomodar na obviedade, surpreendendo o ouvinte com modulações que uniam escalas distantes (aqui, como em "What is Life", entre um  ré maior e um fá maior).

"Who Can See It", a seguir, recupera o modo melancólico, mas com uma harmonia e compassos mais complexos (5/4  e 6/4), estranhos demais para soar como apenas mais uma balada. A melodia é sinuosa e exige um ‘pulo vocal’ do acorde de dó maior para o de mi maior numa linha quebrada e magnífica, expondo mais uma vez a elegante sensibilidade  musical de Harrison, que aqui registrou uma interpretação impecável, mesmo com as limitações de sua voz de amplitude reduzida. A letra, de novo, reflete seus sentimentos para com um mundo áspero e insensível, que não reconhecia o seu empenho em firmar-se como uma personalidade liberta do passado beatle. E essa mensagem voltaria na canção seguinte, e dentro do esquema suavidade/impulsividade que caracteriza o disco até aqui: "Living In The Material World" é um número de rock mais pesado - dentro do que se pode chamar de “peso” inserida na natural leveza musical de George. Esta faixa é uma síntese de todo o disco: em ritmo acelerado, George faz observações cáusticas sobre os hábitos consumistas e materialistas da sociedade ocidental,  jogando farpas até em John e Paul, enquanto na parte do meio ele reveste a lembrança de um mundo espiritual interno fazendo-se acompanhar por instrumentos indianos como a tabla e a tamboura, tocados por Zakir Hussein. A gravação é um desfile de competência e virtuosismo técnico, com Harrison arrasando no solo de slide, num duelo empolgante com o saxofone de Jim Horn. A bateria de Jim Keltner, o órgão de Gary Wright e o piano de Nicky Hopkins também são pontos altos, como de resto em todo o trabalho instrumental insuperável do álbum.

"The Lord Loves The One" abre  estrategicamente o lado 2 do LP com um  andamento rápido, detentor de uma discreta batida  funky, - o último numero verdadeiramente animado do álbum - e  é  de verdade uma peça musical de valor inestimável, trazendo um Harrison afiadíssimo em solos de guitarra, com fraseados que dialogavam constantemente  com o vocal imperativo do compositor. Os versos da canção, porém,  formam  um sermão doutrinador, transformando George em uma espécie de “padre pentelho” grasnando sozinho numa era em que a androginia de Ziggy Stardust  (Bowie) era a voz  da vez.

"Be Here Now" vem a seguir com um tom meditativo e minimal, sugerindo uma  verdadeira peça musical indiana, com quase nenhuma modulação harmônica, com arranjo conduzido principalmente pelo órgão Hammond de Gary Wright, e com versos que insistiam na necessidade de se viver apenas no momento presente, como se fosse possível que o mundo se esquecesse um dia do fato de ele ter sido um dos Beatles.

A faixa seguinte, "Try Some Buy Some", havia sido gravada anteriormente, como já vimos, e abre uma sequencia  de certa morosidade musical, com "The Day The World Gets Round" (uma canção triste que nasceu de um sentimento de potência nutrido com a realização do concerto para Bangla Desh  mas que revelou-se verdadeiramente como um manifesto do descrédito de Harrison na raça humana) e ainda "That’s All", uma bonita balada com compasso alternado entre o 4/4 habitual e em 3/8 na parte do meio, com um arranjo de cordas  que em muito repetia a dramaticidade de "The Long and Winding Road" - certamente por influência de Phil Spector - mas que com isso encerra o álbum num tom baixo, angustiado e nostálgico, como se Harrison no fundo desconfiasse de que toda a sua filosofia de vida não pudesse livrá-lo das agruras de uma vida contraditória.

A impressão final é que Living in The Material World é um disco triste, um documento artístico que transpira impotência e melancolia, uma luta entre os fantasmas do passado e a busca frenética por uma identidade, permeado por raros momentos daquele velho humor cáustico do guitarrista. Um solitário sopro de descontração e bom humor sobraria  apenas para o lado B do compacto com "Give Me Love", na faixa "Miss O’dell", composta em Los Angeles dois anos antes, e cuja letra fora escrita como uma gozação (George dá gargalhadas enquanto canta a musica), uma auto paródia acerca das excentricidades de um milionário, e que fora criada como uma cartão postal para Chris O’dell, uma antiga funcionária da Apple.

Embora já parecesse anacrônico ao habitat do rock produzido em 1973, Living In The Material World manteve a carreira de Harrison num patamar de alta qualidade. Para acompanhar a arrecadação dos direitos autorais do disco, George montou a The Material World Charitable Foundation, cuja renda dos royalties  do álbum e do compacto com "Give Me Love" reverteria em favor (até os dias de hoje) de projetos artísticos e assistenciais para diversas organizações em todo o mundo, como os Médicos Sem Fronteira, Great Ormond Street Hospital, Macmillan Nurses e instituições que cuidam de crianças carentes e portadoras de deficiências físicas, entre muitas outras. O álbum foi remasterizado e  relançado  em 2006, com um DVD bônus com poucas  imagens inéditas da época e a versão demo de "Sue Me Sue You Blues", além de "Miss O’dell" e "Deep Blue" (lado B de Bangla-Desh) como bonus tracks.

Marcelo Sanches 
mginger3003@uol.com.br 
ESTE TEXTO FAZ PARTE DE UM ORIGINAL REGISTRADO NA BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO EM NOME DO AUTOR. NÃO PODE SER REPRODUZIDO SEM A DEVIDA PERMISSÃO.