Afinal, quem foi John Lennon?

Por Marcelo Sanches, fanático pelos Beatles!

DISCUTINDO UM POUCO A IDEIA DE ÍDOLO 


Hoje em dia, com os excessos da Internet e das redes sociais, a proliferação de textos tornou-se prática corriqueira. Para chamar a atenção e atrair publicidade, muitos sites jogam milhares de matérias ou crônicas de fontes duvidosas, em sua grande maioria requentando temas já ultrapassados ou criando factoides que visam massacrar reputações. As vítimas principais são políticos (aqui no Brasil apenas de um partido), artistas, celebridades e claro, ídolos de todas as épocas e gerações. Mortos ou vivos.

Eu gostaria de abrir um parênteses antes de comentar sobre John Lennon e falar um pouco sobre essa questão de ídolos. Porém, antes que alguém pense que vou tentar desmistificar o eterno beatle, ressalto que sou um “beatlemaníaco” desde os 5 anos de idade. Hoje tenho 55. Portanto, ouço as musicas destes caras (John e os Beatles) há 50 anos. E sim. Vou tentar desmistifica-lo. Mas para admira-lo mais ainda, quem sabe.

Muitos de nós entendem um pouco do que seja idolatrar uma pessoa. E outros tantos não fazem a menor ideia do que está por trás desta idolatria. Na sociedade de massas - e agora a do espetáculo - em que vivemos desde o pós-guerra, a figura de um ídolo pop (entre tantas outras categorias) passou a concentrar todos os nossos desejos de nos destacarmos em meio a massa de pessoas comuns e anônimas. Sim, acabamos por projetar num ídolo tudo aquilo que gostaríamos de ser, de nos fazer diferentes daquilo que somos na nossa insignificância cotidiana. É como se esse astro (ou líder politico, ou até mesmo uma figura religiosa) pudesse se tornar a voz que a condição de “ignorados” nos toma. Num mundo onde a imagem é cada vez mais valorizada e serve de cartão de visitas de nossas identidades, tornar-se membro de um fã-clube ou imitar o visual de um roqueiro que admiramos tornam-se as formas mais usuais de nos identificarmos com ele e com nossa “tribo”, e também de aplacarmos nossa sensação de solidão ao nos sentirmos pertencentes a um grupo. Com isso, nos tornamos visíveis, “identificados”.

Muita gente que conhece você, leitor beatlemaníaco, provavelmente se refere à sua pessoa como o “fulano que gosta dos Beatles, que possui uma baita coleção de discos do grupo”. Aí também entram outros fatores que são cultivados pelo consumismo: ao comprar um disco, ter uma foto rara, uma revista antiga, uma guitarra já tocada por alguém do grupo ou seja lá qual for o item, projeta uma intimidade fantasiosa, como se compartilhasse um objeto mais próximo possível do corpo físico deles. Quem já foi a Londres e cruzou a Abbey Road, sente-se certamente como alguém que compartilha da história dos Beatles, já que a foto da banda atravessando aquela rua é uma das imagens mais famosas da história da humanidade. Algumas pessoas perdem a mão deste processo psíquico e entram num processo psicótico, chegando a confundir o ídolo consigo mesmo. Para sobreviver, é preciso exterminar o verdadeiro. Deu no que deu com nosso John Lennon.

A MÍDIA



A mídia sempre faturou em cima dessas necessidades psicológicas dos fãs. E com a Internet, essa prática tornou-se ainda mais banal. Além do mais, distrai as pessoas de coisas mais sérias, como por exemplo, entender os processos políticos e sociais do seu país e o que está em jogo diariamente nas grandes transações financeiras, enquanto nos ocupamos com fofocas e demais maledicências. A “indústria da fofoca” (como George Harrison chamava a imprensa) transforma o que pode ser uma arte engajada e de ruptura, em objeto consumista, em uma imagem midiática, em algo facilmente “comprável” e que se banaliza numa vivência de prazeres fúteis e efêmeros. Você compra algo, guarda no armário e logo está se sentindo vazio outra vez. E repete o processo. A estante de discos está cheia e você continua no vácuo.

Portanto, aqui nós temos dois “Johns Lennons”: aquele homem criativo e absolutamente humano (no sentido de ter fraquezas e temores como qualquer um de nós) e que viveu até 1980 como um dos membros de uma grande banda musical que revolucionou o rock nos anos 60 e um outro, nascido em 9 de dezembro de 1980, que fora transformado no “arauto da paz e do amor”, num “gênio indiscutível”, num príncipe POP acima de quaisquer suspeitas, enfim, numa imagem midiática que renderia milhões e milhões de dólares a cada ano, tudo isso gerenciado por sua viúva, Yoko Ono Lennon. Essa necessidade de alimentar o ídolo rende bobagens, como por exemplo, as constantes matérias que revelam o “lado real” de John.

Ora, o sujeito era humano! O problema não está em revelar seu lado real; está em alimentar sua imagem superficial, irreal, midiática, “coisificada”, vendável, alimentadora de sonhos e ilusões que apenas distraem as pessoas das suas vidas reais. Lembram-se das ultimas entrevistas de John? O que ele mais dizia era algo assim: “Deixem-me viver minha vida comum, de pai de família, e esqueçam de ficar me cultuando. Ninguém pode viver por vocês, os Beatles e eu não podemos. Só vocês podem”. Qual dos Lennons você curte mais?

John + Paul + Beatles



John foi um compositor revolucionário, em primeiro lugar. Um compositor pop. Mas não era uma sumidade. Aqui no Brasil tivemos vários compositores geniais, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, da mesma geração de John (anos 60), e que muita gente considera mais brilhantes poética e musicalmente, mas pelo fato de serem de um país periférico, nunca conseguiram o mesmo destaque dos Beatles no mundo. Lennon era um gênio como eles? No meu modo de ver, sim. Ser um gênio tem várias explicações, inclusive neurológicas. Mas não vamos entrar nisso aqui. Vamos combinar que ser gênio é ter uma enorme capacidade criativa. E essa “potencia criativa” vai encontrar ferramentas adequadas para se colocar no mundo. E aí entram várias premissas, inclusive as históricas e sociais.

A genialidade de Lennon e dos Beatles foi uma consequência social de uma época explosiva - mundialmente falando - visto que eram garotos que não tinham futuro no pós-guerra, quando tanto o passado recente como o futuro imediato lhes pareciam algo assustador, capaz de lhes despertar uma inquietude; eles moravam em Liverpool, cidade portuária, trânsito de muito comércio e de gente que vinha do mundo todo. Foi assim que alguns discos de rock chegaram até eles. O rock and roll também foi um impacto para os garotos, como foi para toda uma geração. Era a ferramenta adequada naquele momento histórico. Sendo uma cidade escura, úmida, cheia de becos, triste e com um povo melancólico, Liverpool podia despertar uma vontade de transformar falta de perspectiva em expressão de alguma coisa.

Mas também existe o acaso. John teve muita sorte de cruzar com Paul (e vice-versa) e assim foi com todos os quatro Beatles. E por quê? Porque Paul tinha um pai músico, que ouvia de tudo, e que influenciou o pequeno McCartney a começar a criar cançonetas desde cedo, em todos os estilos. Gênio. Paul era (e é) um gênio também. Mas o que teria sido sem John? Vai saber, mas me arrisco a dizer que talvez não fosse muita coisa. O que dizer de John sem Paul? Também aposto que não aconteceria muita coisa. A química entre os dois foi magnífica. John era um garoto rebelde, que se sentia abandonado, era criado por uma tia severa, comparava-se aos outros garotos e sentia que lhe faltava um sentido (não ter pai nem mãe normalmente causa um vazio profundo, uma carência identitária); isso também fez de Lennon um artista: ele tentou a pintura, não deu certo. Tentou a poesia, não deu certo. Pegou a guitarra e aprendeu o básico. Nunca seria um guitarrista, somente porque o que lhe interessou desde o início foi compor canções. John não seria nunca um musico virtuoso, mas sim um compositor que saberia se acompanhar neste instrumento e mais modestamente ainda no piano. Não lhe interessava realizar grandes solos de guitarra! A vontade era de compor. Então montou uma banda de rock and roll, The Quarrymen. Depois, conheceu Macca e ficou instigado ao ver que o carinha mais novo que ele compunha. John tentou. E conseguiu sua primeira canção! Bingo! Paul começou a lhe dar mais dicas. Não era difícil tocar rock and roll e criar melodias, pelo menos para a dupla que nascia ali, um complementando o outro. John com sua energia indomada, seu ódio, sua potencia sempre prestes a se tornar ato, sua inquietude faiscante e Paul com sua técnica, sua sensibilidade melódica, seu ouvido espetacular. Lennon/McCartney. Então vieram George e Ringo. Beatles!

Por que os Beatles foram geniais? Porque eram quatro figuras cativantes, repletas de tiradas engraçadas, joviais, espontâneas. Porque foram influenciados por diversos gêneros musicais, além do rock and roll: boleros, foxtrotes, jazz, cancioneiro americano clássico (conhecido também pelo nome de Tin Pan Alley songs), musica folclórica irlandesa, musica folk e possíveis outros gêneros que tocavam nas emissoras de radio que eles ouviam com frequência. Como tinham que tocar durante horas nos pubs lá pelos anos de 1960/61/62, aprenderam a tocar muitas canções em diversos estilos e a música tornou-se parte intrínseca de suas personas.

Harrison também era influenciado por compositores refinados como Hoagy Carmichael, dentre outros, e provavelmente instigava os colegas a ouvi-lo também. Tal química encontrou John e Paul, que de posse de uma vívida criatividade, reinventaram toda essa sopa na forma de composições saborosas que não podiam se encaixar no simples rótulo de rock and roll. Daí brotou uma capacidade singular em Lennon: unir sua revolta (disfarçada num humor cáustico), mais seu prazer em brincar com palavras (ele escreveria dois livros interessantes, mas só interessantes, nada mais) juntamente com sua extraordinária habilidade de criar melodias. Suas canções conseguiam ser delicadas e belas ao mesmo tempo que eram adornadas pelo rancor metálico de seus sentimentos de abandono e de sua voz igualmente cortante. Ouçam "Norwegian Wood": é a simplicidade revelando a complexidade, é a honra de macho morrendo na constatação da liberdade feminina; na primeira melodia, maravilhosa, em acordes maiores, John canta que “conheceu uma mulher”, e quando revela que ela o mandara “deitar-se em qualquer lugar” após o ato sexual, sua identidade masculina se entristece sobre um acorde de mi menor.

No universo pop daquela época, esse despojamento era incomum. Com a ajuda de Paul e dos Georges (Harrison e Martin), John descobriria sequências harmônicas mais complexas e criaria algumas das mais belas canções populares de todos os tempos. Ouvir os Beatles era tomar contato com um estado de espírito excitante, empolgante, era um tipo de musica que despertava emoções renovadoras numa sociedade abalada pelo assassinato de Kennedy e por uma velha Europa ainda amargando os destroços da segunda grande guerra. De início, as letras eram tolinhas, mas de vez em quando o cinismo escapava do controle: em Please Please Me, John simplesmente pede uma ajuda para sua namorada nas intimidades do casal, assim como ele a ajudou...imaginem como! Em "I’m A Loser ele revela que não é um moço alegrinho como um palhaço, e que essa “graça” era apenas máscara; em "You’ve Got To Hide Your Love Away", John provavelmente assume a persona do amor platônico que Brian Epstein, o empresário gay dos Beatles, sentia por ele. E avisa para Brian: você vai ter que esconder esse amor, cara. Lennon não o critica, apenas se coloca no lugar dele e legitima sua tristeza. " Help!" Já mostrava que o sucesso não era o remédio para a eterna insatisfação (quando eu era jovem, nunca imaginei que fosse precisar de uma outra pessoa...me ajude, eu estou muito mal). É a constatação prematura de que o mundo das celebridades é vazio e falso, e que algo muito maior que ele - um outro ou uma causa mais nobre - poderia ser a solução. Em "Nowhere Man", Lennon canta justamente sobre o sujeito comum, anônimo, que sem ter consciência de sua sujeição robótica ao sistema, faz a engrenagem do mundo capitalista funcionar, para o bem e para o mal. Não se pode ignorar, claro, a enorme influencia de Bob Dylan no estilo de John escrever suas letras. E a influência dos Beatles na guinada musical de Bob em 1965. Ah, sim, e Dylan apresentou a maconha para os Beatles, que experimentariam outras drogas na sequência.

Com as alucinações lisérgicas, os sons que pululavam nas cabeças do grupo queriam se fixar nas fitas magnéticas do Abbey Road Studios. Os sons de John principalmente. E assim, gravações tocadas ao contrário, loops e tentativas de descobrir novos efeitos sonoros passaram a permear o universo criativo da turma. "Tomorrow Never Knows", do Revolver, com um acorde só, é talvez o retrato mais fiel do estilo Lennon + LSD: melodia sinuosa desenhada com poucas notas que brincam sobre o acorde de dó maior cantada com a voz de um entidade espiritual; tem uma letra absolutamente enigmática para os padrões daqueles tempos, acompanhada por efeitos sonoros que sugerem uma espécie de limbo entre a vida e a morte.

Neste ambiente de sonhos, a parceria genial de John e Paul continuava atuando de duas maneiras: eles colaboravam um com o outro em dupla ("In My Life", por exemplo) ou competiam pra ver quem compunha a melhor canção; John voltou da Espanha em fins de 1966 com "Strawberry Fields Forever" e Paul respondeu com Penny Lane. As duas falam da infância, mas a de John é um verdadeiro mosaico de imagens oníricas, exaltação da dúvida e convites esparsos para uma relação mais verdadeira, com algumas visões otimistas de renovação do ser que só podem ser experimentadas na sua infância, antes da perversão do espírito pela vida adulta (“viver é mais fácil de olhos fechados, confundindo tudo o que se vê”- ou que se imaginava ver). "Penny Lane" é apenas um típico retrato velho amarelado (e brilhante) de Paul.

Depois, vieram mais obras primas, incluídas no festejado Pepper’s, que completa agora 50 anos: John com "Lucy In The Sky With Diamonds", melodia de poucas notas e que se dilui entre as várias outras delicadas da sequencia melódica e macia que compõe o riff tocado por Harrison, repleta de versos que permanecem no sonho lisérgico; e John + Paul com "A Day In The Life": obra prima máxima da dupla, casamento de duas faixas compostas pelos dois separadamente e com um arranjo de tirar o fôlego, transformando uma noticia triste de jornal - o cotidiano abobado de um sujeito anônimo que morre num acidente de carro - em um acontecimento grandioso, adornado por uma orquestra descompassada e atonal, que termina numa grande explosão de piano em mi maior. Traz aqui a espetacularização da tragédia, típico recurso da sociedade do espetáculo que os Beatles ajudaram a criar involuntariamente e a... combater, embora sem muito sucesso neste último transitivo.

É claro que viriam mais obras primas de John com os Beatles: "Walrus", "Across the Universe", "Goodnight" (sim, John mostra a sua versatilidade ao criar uma linda canção de ninar), "Happiness Is A War Gun" (uma micro-ópera povoada de delírios linguísticos que antecedeu o lado dois de Abbey Road), "Dear Prudence" e "Because" (um trabalho fantástico de harmonização vocal). Mas havia outra questão: a fase lisérgica o transformara em uma pessoa ainda mais perdida, apática, embora Paul continuasse funcionando como um suporte, aquele sujeito que continuava provocando o parceiro para manter as coisas funcionando. A fase profícua, esteticamente soberba, terminaria na Índia, quando John compôs uma última leva de melodias bem acabadas. Quase todas entraram para o White Album. E então, veio Yoko.

Yoko Ono teve duas funções iniciais na vida de John; primeiro, ela o informou melhor sobre o que estava acontecendo no mundo e lhe ofereceu a oportunidade de acompanhar com olhar mais apurado as transformações sociais e políticas que aconteciam em 1968. Foi aí que Lennon começou a se “politizar”, embora o pacifismo que ele adotara então tivesse muito de publicidade e muito pouco a oferecer em termos de mudanças concretas na sociedade. Em "Revolution 1", ele não sabe ainda como atuar enquanto um líder da juventude (“conte comigo fora, dentro...”).

Mas a largada estava dada. A segunda função de Yoko foi jogar brasa na fogueira dos Beatles e afastar Lennon dos colegas. Vinda de Nova Iorque e sendo uma artista multimídia, Ono podia ter lá seu lado interessante como artista plástica, mas o problema era que ela se achava também uma criadora musical - ou viu nessa perspectiva uma boa maneira de se promover. Com ela, Lennon arvorou-se a continuar seus experimentos sonoros, esquecendo-se de Paul, mas tudo o que conseguiu foi patético. Como tinha fama e prestígio, achou que qualquer montagem sonora fosse causar um frisson junto à mídia; "Revolution 9" tem seu charme, mas não era novidade; Frank Zappa já realizava ousadias musicais e sonoras muito mais consistentes desde 1964, tudo isso com uma riqueza musical incomparável. Two Virgins, álbum que John lançou com Yoko para celebrar a união do casal é uma das maiores aberrações fonográficas de todos os tempos, assim como os dois discos de mesmo perfil que o sucederam.

John parecia querer causar um estrago na sua reputação de beatle. Queria machucar Paul e George, talvez por estes terem se irritado (com razão) com a presença de Ono no estudio o tempo todo. McCartney ainda insistiria durante dois anos e a banda produziria mais dois discos, Let It Be (onde John dá pouco sinal de criatividade, pois estava afundado em Yoko e na heroína) e Abbey Road, onde alguns espasmos de genialidade ainda brilhariam em John através de "Because". Diferenças acerca da direção empresarial da banda (Epstein havia morrido em 1967 e John impôs Allen Klein como novo empresário em 1969) fizeram com que ele e Paul parassem de compor juntos em definitivo e assim, acabassem com os Beatles. Agora, seria tempo de Johneyoko, uma entidade só. A transformação de Lennon foi impressionante. E era irritante a forma como ele parecia acreditar cegamente em Yoko e jogar no lixo a maior banda musical de todos os tempos que ele, afinal, criou.


Johneyoko



O casal realizaria vários curtas-metragens e eventos midiáticos pela paz, mas nada que realmente fizesse valer a pena de assisti-los. Mesmo com toda a conversa sobre paz, John tornou-se agressivo, destrutivo, e nem mesmo a paixão declarada com frequência pela esposa parecia liberta-lo das tormentas. Quando Paul resolveu avisar que havia saído dos Beatles, Lennon enfureceu-se. Achava que ele teria que anunciar o fim da banda, já que havia proposto sua própria saída meses antes do colega fazê-lo. O pacificador que andava de roupas brancas era tomado por uma raiva incontrolável facilmente.

Nesse processo árduo que envolveu a separação dos Beatles, John compôs e gravou duas grandes canções solo: "Cold Turkey" e "Instant Karma!", dois números pesados de rock que explanavam as dores recentes de Lennon: seu vício em heroína e seu desapontamento com as tentativas de organizar eventos de protesto pedindo o fim da guerra no Vietnã. Uma tentativa extra-musical seria feita em 1970: uma terapia do grito primal. Lennon terminou esse tratamento e o traduziu em musica novamente, indo direto para o estúdio gravar um grande clássico: John Lennon/Plastic Ono Band, disco visceral não por melodias bonitas e delicadas - embora algumas até apareçam aqui- mas por colocar toda a crueza das suas lembranças de infância na musica seca, ríspida, simples, raivosa e reveladora que domina o álbum. Aqui, a genialidade de John está na sua capacidade de desnudar-se de todas as máscaras, de todas as armadilhas estéticas de um produto de consumo.

É o germe do punk. Neste álbum, está a guitarra limitada e simples dele sem as performances dos Beatles e as edições de George Martin, embora Lennon tivesse a preciosa companhia de Ringo, Klaus Voormann e Billy Preston, além de Phil Spector na produção; suas letras são puros sentimentos, livres de metáforas e formalidades linguísticas. Lembro-me de ter ouvido "Working Class Hero" em 1974, aos 12 anos, e de ter me identificado com aquela narrativa que me informava os métodos que a sociedade ocidental de maneira geral nos formava para o “mercado” (“Eles te maltratam em casa e te massacram na escola (...) você tem que aprender a sorrir enquanto mata se quiser ser um dos vencedores”). Em "God", John se fecha ao passado, renega todas as crenças do hippismo e se vê sozinho com Yoko, declarando que o “sonho acabara” (e também os Beatles e os anos 60). "Mother" é o grito de dor pela infância/adolescência sem referencia familiar. Tudo muito forte, tudo muito intenso. Aquela velha inquietude encontrava novo formato para expressar-se. Mas John não era apenas isso.

John também gostava de ganhar dinheiro e continuava disputando com Paul, embora agora em um time diferente. Macca podia não estar compondo obras primas também, mas seus discos vendiam muito e chegavam aos primeiros lugares, enquanto John Lennon/Plastic Ono Band havia patinado em posições mais baixas nas paradas. E mais: George havia se tornado um artista solo de ponta ao colocar seu All Things Must Pass nos primeiros lugares dos charts também, o que fez com que Lennon resolvesse voltar a adornar sua musica com recursos musicais mais palatáveis e comerciais. Ele voltara para a zona de conforto: se em "God" e "I Found Out" (do disco anterior) ele havia dado um fim ao seu apelo para a paz e o amor, agora em "Imagine" ele retomava o sonho de paz, acrescentando a ele a utopia socialista, tudo em cima de uma melodia doce e sonhadora, muito bela, acompanhada por uma orquestra melancolicamente encaixada no arranjo.

Repescou um antigo tema da época da Índia com os Beatles, "Child Of Nature", e o transformou na melosa "Jealous Guy", uma ode à sua Yoko, que agora parecia transformar-se em sua mãe. Mas o John “ativista politico” apareceria com força em "Gimme Some Truth" (um desabafo contra políticos inescrupulosos). Harrison está aqui com um solo de guitarra que arrepia. E sua lancinante língua maldosa soltaria o verbo em cima do ex-parceiro Paul na musicalmente consistente "How Do You Sleep?", (George também sola aqui), embora a letra seja de uma vulgaridade inexplicável para alguém que pedia a paz na faixa de abertura. Há também a singela "Oh My Love", composta em 1968, o que mostra que John não compunha mais com tanta assiduidade como naquele ano, tendo que buscar no baú canções para preencher um LP. Afora algumas outras canções vacilantes, Imagine resultou num grande álbum, quase adocicado por inteiro não fossem algumas canções ásperas como "It’s So Hard", as já citadas "How Do You Sleep?", "Gimme Some Truth" e "I Don’t Want To Be A Soldier". David Bowie, ao que parece, desapontou-se com o retorno de John ao pop mais comercial, escrevendo “Lennon está à venda novamente” em sua faixa "Life On Mars", lançada na sequência.


John, ativista politico


Então veio a fase política em Nova Iorque, para onde o casal se mudara de vez no final de 1971. Embora tenha se aprofundado um pouco em leituras marxistas e se aproximado de grupos esquerdistas americanos, John fora bastante usado para dar visibilidade a alguns ativistas radicais da época. John era um tanto ingênuo nesta praia e também confuso. Ele não conseguia equilibrar a necessidade de ganhar espaço midiático e suas igualmente verdadeiras intenções de combater o conservadorismo de Nixon e da política imperialista americana.

Yoko também o instigava por um motivo mais que óbvio: ela só seria vista se estivesse acompanhada por Lennon. Neste angu de caroço, várias empreitadas foram realizadas e nada aconteceu de concreto; O casal contratou uma banda de garagem (Elephant’s Memory) para acompanha-lo no disco duplo com canções “jornalísticas” recheadas de denuncias e slogans políticos chamado Sometime In New York City - um fiasco com raras boas exceções - e no show beneficente One To One no Madison Square Garden, em agosto de 1972, uma das raríssimas apresentações ao vivo de John. Sua falta de habilidade no palco, a precariedade da banda e os uivos de Ono transformaram a apresentação em um momento musical inferior. Para piorar as coisas, o FBI começou a grampear Lennon, acabando por tentar expulsá-lo dos EUA.

Ele resistiria até conseguir o visto definitivo, em 1976. John e Yoko entraram em crise, e a separação acabou acontecendo no início de 1973 após um coito mal disfarçado de Lennon com uma fã numa festa onde todos se afundaram em depressão pela vitória de Nixon nas eleições, no cômodo ao lado da sala onde Yoko escutava os gritos prazerosos da mulher. Ono vinha se queixando da agressividade do ex-beatle, cada vez mais afetado pelo álcool e pelas drogas. Mas ali estava, na verdade, uma nova chance para John se libertar da sua “mãe” e se conectar com sua musica novamente, o que seria tarefa complicada.

John passou a sair com a bela chinesa May Pang, sua secretária, e buscou reatar suas velhas amizades. Retrabalhou numa grande canção composta em 1971, "I’m The Greatest", e gravou-a com Ringo e George para um LP de sucesso do baterista; começou a fazer contatos com Paul novamente, e os dois passaram a se encontrar com alguma frequência. John gravou três discos entre 1973 e 1974: Mind Games, Walls And Bridges e Rock'n'Roll. No primeiro, revezou canções fortes (como a faixa título, "Aisumansen", "One Day At A Time", "Intuition") em meio a algumas apenas medíocres, umas com versos de “chamadas sociais” e outras com declarações de arrependimento em relação à Yoko; no segundo disco, melhorou substancialmente a qualidade dos temas musicais com números brilhantes ("Number 9 Dream", "Whatever Gets You Thru The Night", "Old Dirt Road", "Bless You"), embora as letras revelassem uma personalidade confusa, perdida, carente e fraca, que pede pela volta da “mãe” protetora.

No terceiro, John pretendeu homenagear seu gênero predileto, e novamente alternou poucos momentos luminosos com versões insossas de velhos clássicos, optando por arranjos indefinidos que não soavam nem como os anos 50, nem como os 60 ou os 70. John havia adotado os sopros como base de seus arranjos, o que deixou que o resultado final de suas gravações (nos três discos) parecesse anacrônico e deslocado.

De qualquer forma, já era óbvio que sua arte de compor estava sentindo a falta de uma parceria como a de Paul. Os dois, livres de Yoko e Allen Klein, estavam prestes a trabalhar juntos no inicio de 1975, quando Ono achou “que já era hora de John voltar para casa” e o chamou de volta para o Dakota, para onde haviam se mudado em 1973, pouco antes da separação. John deixou May Pang, Paul e a música para trás. Yoko engravidou e impôs que Lennon se retirasse dos negócios da música como condição para aceitá-lo de volta. Com o nascimento de Sean, John sumiu dentro de casa, jogando fora a oportunidade de renovar sua carreira e voltar a realizar um trabalho mais criativo, como nos velhos tempos.

Ninguém é capaz de dizer se uma nova parceria com Paul renderia bons frutos - e jamais saberemos disso - mas de qualquer maneira, Walls And Bridges havia sugerido um reaquecimento da inspiração que fora subitamente interrompido pela necessidade de John de refugiar-se de seus “demônios” psíquicos no colo de Yoko Ono. O que ele chamou de “fim de semana perdido” poderia muito bem ter sido o gatilho que todo o artista inquieto necessita para criar sua expressão mais forte e eloquente. Como dizia Eric Clapton, “ninguém consegue criar um blues de barriga cheia”. A dor e a angustia eram o motor pulsante de Lennon; sem esse motor, protegido debaixo das asas maternas de Ono, ele acomodou-se. Sem Paul ou outro parceiro que o desafiasse, John deixava expostas suas limitações. O período de 1975/1980, afinal, não foi nada do que foi divulgado a partir da morte de John. Ele compusera muitas canções sim, mas poucas lembravam sua antiga verve. Não viveu o conto de “casal perfeito” com Ono, divulgado exaustivamente pela sua construção publicitária pós-mortem, mas teve sim uma relação difícil com a companheira, sendo castrado de diversas maneiras pelo comportamento autoritário dela. O contato de Lennon com o mundo externo era vigiado e controlado por ela; amigos de juventude não podiam visita-lo com frequência e claro, telefonemas de Paul, George e Ringo eram em grande parte “censurados” por Yoko. No final, John aceitava o controle dela sem pestanejar, embora tenha declarado “que ninguém o controlava”.

Lennon vivia atormentado com o sucesso de Paul e de outros artistas, e sonhava com a fama, embora tenha dito antes de morrer que “não precisava mais daquele circo todo”. John era tagarela, e gostava de falar pelos cotovelos; era demasiadamente contraditório a ponto de parecer infantil, mas é inegável que estava bastante lúcido nos últimos anos de sua vida, pelo menos em relação a alguns assuntos, como por exemplo sobre seu papel como astro de rock, suas limitações musicais, sua visão social e sua função de pai. Lennon buscou ser melhor para Sean do que o fora para Julian, o primogênito, nascido em 1962.

Quando voltou a gravar, poucos meses antes de ser assassinado, John queria simplesmente tocar suas novas faixas, e não estava preocupado em se renovar; era apenas um compositor buscando expressar-se da melhor maneira que conseguia: com uma musica simples, que era o que sabia fazer afinal. Gravou um disco eficiente, dividido com Yoko, Double Fantasy. Poderia ser um álbum só dele, não fosse mais uma imposição de Ono. O disco que saiu em 1984, com as sobras de Fantasy, mostrava alguns temas interessantes como por exemplo "Nobody Told Me", um afiado rock and roll cujos versos denunciavam com fina ironia a geração yuppie que emergiria durante os neoliberais anos 80. Lennon era de certa forma um visionário: “todo mundo está falando e ninguém diz uma palavra/ todos estão fazendo amor e ninguém se preocupa/ tem alguns Nazistas no banheiro logo abaixo dos degraus/sempre há algo acontecendo e nada de fato acontece/tem sempre alguma coisa no fogão e nada na panela/(...) ninguém me disse que haveria dias como esses...estranhos e intermináveis dias”.

Muitas vezes pisou na bola. Óbvio. O cara era especial, mas era humano, não era um Deus! Cometeu plágios imperdoáveis: "Crippled Inside" (de Imagine) é igual a uma canção tradicional de Liverpool chamada "Black Dog", gravada por um trio, Koerner, Ray & Glover.

Os Beatles chegaram a tocá-la durante as filmagens de Let It Be. "Happy Xmas" é cópia de "Stewball", canção folclórica americana gravada por Peter, Paul & Mary no inicio dos anos 60; "Come Together" é parecida com "You Can’t Catch Me", de Chuck Berry, e John acabou sendo processado por Morris Levy, proprietário dos direitos autorais da faixa, que o acusou de plágio, comprometendo-se a gravar mais musicas do catálogo do cidadão, o que geraria o álbum Rock'n'Roll em 1975. No segundo disco que acompanhou Sometime In New York City, Live Jam, de 1972, John simplesmente incluiu seu nome na autoria de diversos temas compostos por Frank Zappa (originalmente chamados de King Kong). A gravação do disco mostrava uma jam session realizada durante uma apresentação surpresa de John e Yoko com Zappa no Fillmore de Nova Iorque, no ano anterior. Zappa chiou quando viu os créditos, mas John não deu bola. John era tudo isso, além de brilhante compositor.

Mas era extremamente incoerente. Durante os anos 60, era praticamente um alienado político, apesar das declarações bombásticas comparando a popularidade dos Beatles com a de Jesus Cristo, que ajudaram a combater um pouco as rígidas imposições religiosas junto a juventude; quando estava no auge de sua “fase socialista”, foi capaz de gravar uma faixa com propostas claras de divisão de riquezas e fim da propriedade privada usando para isso um vídeo promocional gravado em sua mansão cercada por extenso jardim e um lago. Pedia pela paz na sua canção-slogan "Give Peace A Chance", mas não se poupava a falar mal dos Beatles, que o projetaram para o mundo. Tinha sempre uma resposta venenosa para dar a quem lhe desafiava. Mas nada disso fez de Lennon um ser degradante, como fazem questão de divulgar vários escritores que faturaram horrores escrevendo sobre ele. Nem John nem ninguém tem a obrigação de ser perfeito. O mito Lennon Homem da Paz criado após 1980 é que impõe a necessidade de se cultivar essa falsa imagem de profeta pop. Lucram criando-a e lucram desmentindo-a.

Enquanto isso, o que vale mesmo a pena, é ouvir a musica. Única coisa que realmente deve interessar. Porque ela independe do mito.