George Harrison Discografia: Dark Horse (1974)


Em 1974, Harrrison estava com novo amor (pelo menos ele tentava parecer como se fosse): a mexicana Olivia Arias, secretária da Dark Horse Records, selo que ele havia montado naquele ano já sonhando com sua própria gravadora, assoprando o fantasma da moribunda Apple dos Beatles, prestes a ser fechada – na verdade, o antigo selo dos Fabs seria de 1976 para adiante apenas uma espécie de banco captador dos royalties das antigas gravações do grupo.

Depois da maratona de gravações para discos de Shankar e do Splinter (nos quais ele tocou em varias faixas, também os produzindo), o guitarrista acompanharia o indiano em várias apresentações pela Europa, mas não tocaria em nenhuma delas; em setembro, como primeiro ato de sua World Charitable Foundation, Harrison ajudou a organizar e financiou o Music Festival From India para Ravi, com uma suntuosa apresentação no Royal Albert Hall.

De todos os boatos que corriam mídia afora na época, o único verdadeiro era o de que o ex-beatle planejava uma excursão pela América. Várias especulações começaram a pipocar na imprensa, até mesmo uma possível série de shows de George com os velhos parceiros John e Ringo. Na verdade, o que ele pretendia era apresentar-se com Shankar, num projeto que unisse a música indiana com a música ocidental, animado que havia ficado com o set list do concerto para Bangla Desh. Também havia a possibilidade de fazer uma espécie de workshop dos contratados da Dark Horse Records, o que naturalmente incluía Billy Preston.

A excursão foi agendada para iniciar-se em 2 de novembro, em Vancouver, Canada, estendendo-se até 20 de dezembro em Nova Iorque. Mas George Harrison ainda era um artista de ponta, da perspectiva do mercado de discos, e tinha em seu currículo uma série de hits, o que indicava que ele estava no jogo, cujas regras são bastante conhecidas daqueles que pretendem dele tirar proveito. O preço a pagar era árduo, e por mais que ele não quisesse ou não gostasse de seguir regras, a largada já estava dada. Para tanto, além de ensaiar para os shows - o que aconteceria nos estúdios da parceira de negócios A&M Records em Los Angeles - Harrison tinha que lançar às pressas um álbum e um single que puxassem a atenção do público para suas apresentações, e vice-versa; havia algum material pré-gravado desde fins do ano anterior, e a solução foi juntar os pedaços. Pela primeira vez, um disco seria montado por George sem a disciplina e a coesão com as quais ele gostava de trabalhar. Foi então que ele passou a recuperar antigos temas compostos no ano anterior e a aproveitar inesperados encontros para juntar material para o novo LP.

Certa noite, ao assistir um show de Joni Mitchell em Londres, Harrison encantou-se com a banda de apoio da cantora, a L.A. Express, um grupo de excelentes músicos de jazz-rock (Tom Scott nos sopros, John Guerin na bateria, Max Bennett no baixo, Roger Kellaway no piano e Robben Ford na guitarra). No dia seguinte, os músicos foram convidados para uma sessão de gravação em Friar Park. Depois de longas jam sessions que duraram horas, as bases de "Hari's On Tour (Express)" e "Simply Shady" estavam gravadas. Segundo posterior declaração do baixista Max Bennett, tudo fora improvisado e gravado sem muita pretensão: "Fomos tocando até que alguma estrutura musical pareceu se formatar. Depois, fomos embora e nem soubemos direito o que aconteceu".

"Hari's On Tour" seria a primeira faixa do LP, um tema instrumental composto aparentemente para servir de abertura para os concertos da turnê que se aproximava, com uma boa melodia executada pela guitarra Stratocaster de timbre idêntico ao usado por Harrison em How Do You Sleep? (de John) e que demonstra mais uma vez sua capacidade para desenhar temas delicados em uma harmonia repleta de acordes jazzísticos com divisões rítmicas interessantes. Começar o álbum com um tema instrumental sugeria que George estava se voltando mais para seu papel de “musico de uma banda”, deixando de lado a pregação filosófico/religiosa dos trabalhos anteriores.

"Simply Shady", a seguir, é uma canção apenas mediana, uma espécie de blues arrastado de andamento lento, bem ao estilo de Neil Young. A letra revela o sentimento que ele vinha experimentando nos últimos meses, quando exagerou no uso de drogas e álcool, que o cegavam a cerca de suas reais intenções: a frase que chamava atenção para a necessidade de “enxergar um elefante cor de rosa” em meio às crises emocionais diz tudo.

"So Sad", a terceira faixa, foi composta dois anos antes por Harrison e gravada no ano anterior por Alvin Lee e Mylon LeFreve, numa versão meio country. Ele começou a gravá-la durante as sessões de Living In The Material World no estúdio da Apple em 72/73, mas a completou nas sessões de setembro em Los Angeles. Ringo e Jim Keltner estão na bateria, o que produz um batida pesada na gravação, enquanto Nicky Hopkins cuida dos teclados. Ao finalizar a canção, Willie Weeks adicionou seu contrabaixo. "So Sad" tem uma boa melodia e um trabalho excelente de George nos violões, mas sua voz - que soa quase como um choro infantil - prejudica a audição, tornando-a sofrida. Escondido na figura de uma terceira pessoa (“ele sentia-se muito triste, sem amor”), Harrison não parece seguro em assumir o seu papel na turbulenta relação do casal nos dias em que a canção foi composta. A faixa foi composta provavelmente inspirada pela separação de George e Pattie.

A quarta faixa, "Bye Bye Love", antigo clássico dos Everly Brothers, foi literalmente assassinada por Harrison, que tocou todos os instrumentos de forma displicente, chegando a registrar ironicamente nos créditos a "participação de Eric e Pattie" na gravação, imitando inclusive o timbre da guitarra de Clapton. Só pode ter sido uma forçada de barra, do tipo “não estou nem aí com vocês”, mas soa mais como uma vingança, em que as vítimas acabaram sendo a melodia original e os ouvintes. Os vocais também são horríveis, e a brincadeira só irritou os críticos.

"Maya Love", que fecha o lado 1, tem um ritmo inspirado no funk, e é uma das melhores execuções instrumentais do álbum, com Willie Weeks no baixo, Andy Newmark na bateria, Tom Scott nos sopros e Billy Preston nos teclados. Na verdade, o forte deste tema - que foi gravado em agosto num estúdio da Philadelphia, numa das várias idas de George à América em 74 - é justamente seu ritmo, já que a simplória melodia é restrita ao refrão que corta as partes instrumentais. É uma das duas canções do álbum cujas letras mencionam a filosofia hindu.

O lado 2 se inicia com a música "Ding Dong Ding Dong", o segundo single do disco e que começou a ser gravada no final de 1973 em Friar Park, sendo completada em várias sessões entre julho em Friar Park e outubro, em Los Angeles. Trata-se de uma canção de natal, um estilo que os americanos chamam de singalong, com uma melodia simples e um refrão que se repete várias vezes para que se possa cantá-lo facilmente. George aproveita para 'cutucar' os eternos sonhadores e especuladores da volta dos Beatles, cantando "jogue fora o velho e receba agora o novo", além de saudar o ano que se aproxima e o espírito de natal. Com instrumental pesado e arranjo inspirado em Phil Spector, com várias guitarras e sopros, mais as baterias dobradas de Ringo e Keltner, a canção fica devendo criatividade e melhor inspiração. Tanto que chegou apenas ao 36° lugar na Bilboard.

A melhor música do disco é, indiscutivelmente, "Dark Horse", que deu título ao álbum. Gravada em demos e takes alternativos ao longo do ano, Harrison ainda estava insatisfeito com o resultado e resolveu regravá-la em Los Angeles, com um take registrado ao vivo no estúdio com os mesmos músicos que o acompanhariam na excursão. Apesar de sua rouquidão, então em fase bem adiantada, George conseguiu um bom resultado na gravação, e a música ganhou um ritmo acelerado e cativante em cima de uma base acústica formada por violões e pelas flautas indianas tocadas por Chuck Findley e Jim Horn. O refrão é delicioso e inesquecível, fazendo de "Dark Horse" um single de sucesso (15° na Bilboard) e uma das melhores canções da carreira solo de Harrison, apesar de seu vocal rouco. A letra, segundo o próprio George, se refere a uma gíria usada para definir uma personalidade "que segue positivamente apesar dos detratores", ou seja, “um azarão”.

A seguir, aparece a canção escrita em parceria com Ron Wood no ano anterior: "Far East Man", um tema interessante, com pitadas de soul music, com levada preguiçosa e sensual, e com uma súbita e criativa mudança de tonalidade no meio da música, bem como uma letra mais 'para cima', diferenciando-se do tom pessimista e melancólico da maior parte do disco: apesar de tudo parecer um inferno, o narrador sente que há um paraíso sobre a Terra.

Para fechar o LP, Harrison gravou a segunda canção que menciona a sua atração pelo hinduísmo, um tema que compôs na Índia no início do ano, "It Is He (Jai Sri Khrisna)", dedicado ao seu mestre espiritual . A faixa segue os passos de "I Am Missing You", do álbum de Ravi Shankar, com arranjo acústico e flautas indianas. É um mix de canção pop com a tradicional música indiana conhecida como 'Bhajan', entoada em cultos religiosos tradicionais; Uma tentativa de recuperar o clima de "My Sweet Lord" e "Give Me Love", sem a mesma qualidade daquelas canções.

Uma canção restante das sessões finais, "I Don’t Care Anymore", como lembram os próprios versos da canção, é um número tão desmotivado que fora relegado ao obscuro lado B do compacto com Dark Horse. Enfim, é um LP irregular até pela forma como foi gravado: às pressas, em estúdios e épocas diferentes. Por outro lado, ele soa mais despojado, improvisado, livre do “Wall of Sound” de Spector, como aconteceu em All Things e Material World, resultando num trabalho musical mais relaxado e despretensioso, até atípico, se formos observar detalhadamente o costumeiro estilo disciplinado do guitarrista com suas produções.

Obviamente, o álbum - lançado em 2 de dezembro de 1974 em meio à excursão - foi malhado pela crítica, que esperava uma continuidade da qualidade dos discos anteriores. Muitos acusaram Harrison de faltar com a criatividade e a inspiração, além de considerar seus vocais deploráveis e inaudíveis. Mesmo com tudo isso, o LP vendeu bastante e chegou ao 4° lugar nas paradas da Billboard nos EUA, onde foi lançado em 20 de dezembro, quando a turnê de Harrison chegava ao fim. O álbum ganharia um disco de ouro. O compacto com a musica título fora lançado antes, em novembro, e enquanto fazia sucesso na América, passou totalmente batido na Inglaterra. Era o primeiro álbum de George (assim como o single) a não chegar ao primeiro lugar nos charts, de maneira geral.

Como curiosidade, a capa do álbum mostra uma reprodução de uma fotografia antiga do Liverpool Institute, onde se pode ver as figuras de Paul McCartney e Neil Aspinall, entre outros. O tempo, no entanto, pode melhorar um trabalho musical ao invés de relega-lo ao esquecimento, como também acontece com frequência. Dark Horse, para mim, tem uma descontração e um clima de improviso que permitiram revelar um George Harrison ousado, em busca de novas direções musicais. Está longe de ser uma obra prima, um obra formalmente acabada, mas sugere que o melhor de uma viagem pode ser o percurso, e não a chegada.

Marcelo Sanches
mginger3003@uol.com.br

ESTE TEXTO FAZ PARTE DE UM ORIGINAL REGISTRADO NA BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO EM NOME DO AUTOR. NÃO PODE SER REPRODUZIDO SEM A DEVIDA PERMISSÃO.