Power to the People, o box que provoca e encanta


Um mergulho no legado rebelde de John Lennon, entre relíquias, cortes polêmicos e debates que soam como um acorde dissonante

O recém-anunciado box *Power to the People* é um convite irresistível para revisitar John Lennon em sua fase mais explosiva em Nova York. Com curadoria de Sean Ono Lennon, a coletânea entrega um arsenal de demos, outtakes e registros ao vivo que reacendem a chama de um artista que nunca teve medo de incomodar. São nove CDs (ou quatro LPs, para os devotos do vinil) que prometem mais de cem faixas inéditas ou raras — um verdadeiro tesouro sonoro.

Ainda assim, há um detalhe impossível de ignorar: a ausência de “Woman Is the Nigger of the World”. Essa canção de 1972, fruto da parceria entre John e Yoko, sempre foi polêmica pela força da metáfora, mas também pela crueza da palavra que a batiza. O corte soa como uma mancha numa celebração que se propõe justamente a entregar “poder ao povo”.

Sean, com sua visão contemporânea, defende a decisão de deixar a faixa de fora. Em tempos de sensibilidades à flor da pele, explica que o impacto de certas palavras poderia distorcer a mensagem central do box. É um argumento válido, mas que abre espaço para a velha discussão: a arte deve ser editada para caber nos limites do presente?

A conversa ganha corpo graças ao olhar afiado de Marcelo Fróes, que no vídeo analisa o lançamento com entusiasmo de quem respira Beatles desde sempre. Ele não hesita em apontar o paradoxo: retirar uma das músicas mais combativas de Lennon de uma coleção chamada *Power to the People* soa, no mínimo, irônico. Fróes transforma a polêmica em lição, lembrando que o contexto histórico é parte da arte.

O crítico brasileiro ainda ressalta as joias que o box oferece, como registros raríssimos de “Cold Turkey” ou os remixes inéditos do icônico One to One Concert. É esse equilíbrio entre encanto e crítica que dá peso ao debate: o box brilha como uma cápsula do tempo, mas deixa no ar a pergunta sobre até onde se pode polir um artista que sempre viveu de arestas.

Entre provocações e risadas nervosas, o vídeo conduz a discussão de forma leve, sem perder a seriedade que o tema exige. A apresentadora surge como mediadora eficiente, pontuando reflexões e mantendo a conversa acessível sem diluir sua força crítica.

O pano de fundo é claro: Power to the People não é apenas um produto de colecionador, mas um retrato da eterna tensão entre legado artístico e sensibilidades atuais. É impossível não se encantar com a riqueza do material reunido, ao mesmo tempo em que se questiona a ausência de uma canção que simboliza justamente a coragem de Lennon em afrontar convenções.

No fim, o box é um triunfo — ainda que incompleto. Oferece a chance de ouvir Lennon cru, apaixonado e em plena ebulição criativa, mas também provoca a reflexão sobre como lidamos com o passado. E talvez essa seja sua maior vitória: não apenas resgatar músicas, mas reacender o debate sobre o poder, os limites e a responsabilidade da arte.